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Luiza Sahd

Maria Casadevall: “mulheres brancas precisam reconhecer seu privilégio"

Luiza Sahd

12/06/2020 04h00

Maria Casadevall em cena da segunda temporada de "Coisa Mais Linda". (Divulgação/ Netflix)

Na próxima sexta-feira (19), estreia na Netflix a segunda temporada da série "Coisa Mais Linda" — protagonizada por Maria Casadevall no papel de Maria Luiza, uma feminista destemida e privilegiada lutando por seus sonhos, ao lado de outras mulheres, no Rio de Janeiro dos anos 1960.

Na saga e na vida, Casadevall faz questão de não se limitar ao que se espera dela como mulher ou como exemplo a ser seguido. Aqui, ela fala de seu processo perene de aprendizado sobre política, racismo, classismo, assédio, quarentena e liberdade — sem medo, como todas deveríamos ter o direito de falar.

Ao final da entrevista, a atriz agradece às provocações e mostra que a coragem emanada por sua personagem na série não vem só de um trabalho de dramaturgia — mas também de suas próprias veias. Poucas atrizes na mesma posição abraça temas polêmicos com tamanha disposição ao diálogo.

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Malu é uma personagem arrojada para os anos 1960 e lida com muitos preconceitos e limitações que a época impunha. Na sua visão, que problemas ela continuaria tendo no Brasil dos anos 2020 e o que, afinal, conquistamos nesse período?

Maria Casadevall: Conquistas institucionais e jurídicas foram feitas e é importante que a gente fale sobre elas. Na primeira temporada da série, a Malu não podia nem assinar um papel no banco sem a autorização do marido. Alguns avanços foram feitos através de muita luta de mulheres que estiveram liderando esse processo, mas acho que a grande transformação que ainda não aconteceu foi a mudança de mentalidade. De uma ideologia que opera na lógica do sistema patriarcal — e que se manifesta por meio de machismo, racismo e classismo.

Hoje, eu acho que a Maria Luiza encontraria maiores facilidades, sobretudo por ela ser uma mulher branca. Existe aí um arcabouço de privilégios que garantiriam a ela liberdade e menos silenciamento ou menos invisibilidade. Mas a estrutura operante na década de 1960 — que vem de uma construção que vem nos oprimindo e violentando há, no mínimo, 500 anos, permanece. Basta a gente olhar para o avanço tenebroso do feminicídio neste período de quarentena para fazer essa constatação. As conquistas que foram feitas devem ser celebradas, mas a gente ainda precisa contemporizar as lutas e o enfrentamento de quem está nas ruas nesse momento. Elas são respostas a toda a opressão e violência histórica que as mulheres e sobretudo mulheres negras sofreram e sofrem.

A gente vai falar bastante das Malus, mas, nessa semana, me parece fundamental falar das Adélias do mundo [sócia de Malu na série, que é negra e mora em uma comunidade, interpretada por Pathy Dejesus]. Como você vê as discussões raciais que estão acontecendo globalmente e como acha que as mulheres brancas como a Malu, têm tratado mulheres negras como a Adélia?

MC: Primeiro a gente precisa tratar o feminismo no pural. São feminismos, e a gente precisa reconhecer essa diversidade para encontrar os espaços em comum, reconhecendo os privilégios. A racialização do debate é o primeiro passo. É preciso que mulheres brancas reconheçam o seu lugar de privilégio e que, a partir dele, possam começar a refletir como melhor ocupar esses espaços e como trazer a luta das mulheres negras para eles.

Nos anos 1960 e 1970, o feminismo estava passando por outro levante histórico, em que as mulheres brancas tinham o protagonismo o processo de invisibilização da raça negra ainda era uma realidade. Hoje, com a democratização dos meios de comunicação e com esses espaços virtuais que foram criados com muita luta, as mulheres negras estão tendo suas vozes mais reverberadas e, paralelamente, mulheres brancas e a branquitude estão começando — ou se não estão, deveriam estar começando — a rever seus lugares e a forma de lidar com os espaços de privilégios. Tudo isso é fundamental para a gente ressignificar essas relações e se responsabilizar pelo passado nefasto de violências e silenciamento da nossa história.

Casadevall e Pathy Dejesus em cena da segunda temporada de "Coisa Mais Linda"

Na sua visão, existe forma produtiva de usar nossos privilégios — sejam eles de classe, de raça, de pertencimento ao padrão estético… Você busca se posicionar nesse sentido?

MC: Sem dúvida, é um processo permanente de aprendizado. Assim como a luta da Maria Luiza para poder trabalhar e não depender do marido era legítima nos anos 1960, existe uma visão muito limitada por parte dela dessa diversidade. Então, para ela, aquela luta era de todas as mulheres, mas a Adélia atravessa o caminho da Malu e diz "olha só, você está lutando para trabalhar enquanto eu luto para não trabalhar, porque eu trabalho desde os 8 anos de idade. Tô lutando para ter melhores condições de trabalho, para poder passar tempo com a minha filha".

Da mesma forma que a gente aponta na primeira temporada que a Maria Luiza está em um processo de aprendizado, não há nada melhor do que se relacionar, ouvir e trocar com pessoas que vivem num contexto diferente do nosso — seja ele de raça, de classe ou de gênero — para aprender. Quando fiz topless no Carnaval de 2019, entrei em contato com várias mulheres que me trouxeram outras perspectivas sobre padrões estéticos. Esse debate me trouxe uma consciência muito mais aprofundada sobre a questão do pertencimento a padrões e opressão.

Falando em padrões estéticos, fiz minha lição de casa e fui pesquisar entrevistas suas na internet. Em uma delas, como mulher, me senti pessoalmente angustiada com a forma como o entrevistador — que é um velho conhecido da TV brasileira — conversava: tentando te tocar e abraçar sem propósito naquele contexto. Não sei se você, em algum momento, sentiu esse tipo de incômodo durante aquela ou outra entrevista, durante alguma gravação, mas queria te ouvir um pouco sobre como o corpo feminino é tratado, muitas vezes, como um bem público, inclusive na mídia.

MC: É uma autorização cultural e histórica do macho sobre o corpo feminino. A Malu passa por isso com um vereador na série, e durante as gravações eu já respondia com repulsa e um certo asco à aproximação dele. Conversando com a Julia Rezende, diretora de cena, a gente entendeu que tinha um ruído que não estava nos levando para os anos 1960 — a gente precisou entender que, naquele momento, as mulheres não conseguiam enxergar aquele ato como abuso psicológico e de assédio sobre o próprio corpo dela. Era uma situação desconfortável, mas ela não conseguia decodificar de onde vinha o mal-estar. Naquele tempo, esse tipo de comportamento não era nomeado como violência.

O mesmo processo acontece com todas nós e aconteceu comigo. Sei exatamente de qual entrevista você está falando, mas naquele momento eu não consegui identificar a origem do desconforto — se aquela pessoa estava sendo gentil, se não tinha nada de mais –, e acho que é aí que esse machismo e esse assédio se apresenta de forma mascarada. Ele aparece, mas não temos muitos mecanismos para apontar e acusar esse tipo de conduta. Talvez por eu estar ainda em um processo ainda inicial de entendimento do meu lugar e das questões do feminino e feministas, eu ainda não entendia aquela situação como um assédio e um comportamento padrão que se repete por conta de uma estrutura que é machista e patriarcal. Achei que era um desconforto pessoal, uma coisa minha, por eu ser mais reservada, porque há sempre essa tendência: enquanto a gente não toma consciência da estrutura, temos sempre um hábito de levar pro lado pessoal.

Nota: não fiz questão de perguntar se eu e Maria estávamos falando da mesma entrevista — inclusive porque o debate sobre a situação poderia ser, eventualmente, mais desgastante para ela do que para o apresentador que foi abusivo. Mas eu me referia a esta.


E é um trabalho duplo: além de a gente precisar contar para nós mesmas que aquilo está acontecendo, temos que explicar para as pessoas por que é inapropriado. Pensei muito sobre isso quando aconteceu com a Simony, que teve o corpo tocado de forma inadequada, ao vivo, enquanto apresentava um programa. 

MC: Na primeira temporada da série, a própria Lígia [personagem de Fernanda Vasconcellos] teve que passar pelo mesmo processo, de entender e explicar que estava sofrendo violência psicológica, moral e física. Nem quando experimentou agressão ela conseguia reconhecer que a culpa era do agressor e ela se culpava e procurava respostas e motivações que vinham dela mesma para que isso tivesse acontecido. É uma assimilação às vezes muito lenta e que demanda muita vontade de nós, mulheres, nos conectarmos com outras, de ouvirmos outras histórias para, então, entender que não é uma questão pessoal, mas coletiva e política.

Nessa segunda temporada da série, há um crescimento da sua personagem e das amigas que a cercam. Malu aprende a dizer adeus, retoma a própria vida, revisita uns relacionamentos, afetos e projetos e ressignifica a relação com velhos conhecidos. Nesse período tão conturbado que estamos vivendo, de pandemia e ruptura, você também se sente em alguma espécie de recomeço ou está mais no mood de encerramentos?

MC: Vou resgatar uma frase da Angela Davis que tem me ocorrido muito ultimamente: "a liberdade é uma luta constante". Acho que isso vale para todas as lutas. As conquistas de todas as minorias políticas estão sempre ameaçadas por um novo avanço da opressão que vai gerar um retrocesso. Eu acho que todo o avanço da violência e da política tradicional sobre os direitos conquistados é muito sobre até onde a gente já tinha conseguido chegar — por vários motivos: por questões políticas, por inclusão, por uma série de motivos. Na segunda temporada de "Coisa Mais Linda", a gente vê isso. A Malu vem de um processo de ascendência e tomada de consciência de conquistas pessoais e coletivas junto com sua rede de apoio de mulheres e, então, ela experimenta o trauma do feminicídio. Ela tem o próprio corpo ferido pelo machismo e pela misoginia e ela volta para a própria vida sob essa perspectiva do trauma e resolve recuar.

Ali, o recado fica claro: "olha, vocês foram longe demais". E a resposta para isso é o ato de violência e de ruptura, então ela se coloca temporariamente num lugar de segurança e comodidade para, depois, também com a ajuda da rede de apoio feminina, entrar de novo em contato com seus auspícios e conquistas que estavam aparentemente perdidas. Isso traz para a gente o ensinamento de que as conquistas são feitas por meio de muita luta, suor e sangue e que elas estão sempre sob constante ameaça. Precisam ser atualizadas todos os dias e isso é muito exaustivo para quem está na linha de frente lutando por elas.

"Coisa Mais Linda" é uma história de 60 anos atrás e o mundo nem mudou tanto assim. Que tipo de mudanças você gostaria de ver consolidadas no mundo daqui a 60 anos?

MC: Muitas. A partir de todo o movimento e toda luta que a gente está vendo hoje, eu gostaria que toda a diversidade passasse a ser respeitada não só socialmente, mas que tivéssemos esses direitos assegurados juridicamente, desde o direito dos povos originários à terra para viver e plantar, para se sustentar. Queria ver todos os direitos garantidos — sobretudo de mulheres — sobre os seus próprios corpos. O reconhecimento dessa diversidade e o respeito a todas elas seria o primeiro passo para construir essa sociedade um pouquinho mais justa.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.