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Discutir transtorno de Kanye nas redes é moleza; duro é dialogar em casa

Luiza Sahd

22/07/2020 04h00

O casal Kim Kardashian e Kanye West. (Imagem: Danny Moloshok)

Na noite da última segunda-feira (20), o rapper Kanye West usou sua conta no Twitter para acusar a esposa, Kim Kardashian, de estar tentando interna-lo em uma clínica psiquiátrica. Entre outras declarações íntimas e confusas, Kanye afirmou que o filme "Corra!" foi inspirado na situação atual dele.

Horas depois, o artista apagou os posts. Tarde demais: pessoas do mundo inteiro já estavam nas redes sociais debatendo se o incidente seria golpe de marketing para lançamento de disco novo, parte estratégica da campanha de Kanye à presidencia dos Estados Unidos ou o que parecia mesmo — um episódio de mania provocado por transtorno bipolar, condição que pessoas próximas à família já teriam dito, em entrevista ao site TMZ, que acomete o rapper.

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Antes de mais nada, é importante lembrar que a saúde mental de artistas não precisa, necessariamente, ser da conta do público. Já a saúde mental de um candidato à presidência dos Estados Unidos é pauta para debate público, sim. Principalmente quando eleger pessoas com transtornos evidentes e não tratados parece estar na moda.

As opiniões sobre a forma de tratar o suposto surto de Kanye nas redes foram, obviamente, divergentes. Quem já nutria antipatia pela importância que o rapper parece dar a si mesmo tirou sarro dos tuítes com narrativa persecutória; quem tem ou conhece gente que vive com transtornos psiquiátricos pediu respeito à situação delicada do artista. Noves fora, aconteceu o de sempre: passamos horas na internet discutindo a saúde mental alheia, a condição financeira que Kanye tem de se tratar, a questão do setembro amarelo e de empatia, mas quase ninguém sabe lidar com esse tipo de problema na vida real.

Ô, lá em casa

Na infância e na adolescência, fui cuidada por mais de dois tutores — e um dos motivos é que um deles sofre, ao que tudo indica, de bipolaridade e personalidade borderline (ou limítrofe). Quando digo "ao que tudo indica", tenho por base diagnósticos de especialistas que observaram, mas não foram pagos para atender a pessoa afetada pelos transtornos, porque ela nunca quis passar por essa situação.

Assim, cresci submetida a situações constantes de violência, negligência, ameaças, surtos e traumas que acabaram conduzindo, naturalmente, a meu próprio quadro de transtorno mental: síndrome do pânico. Uma pessoa que precisa de tratamento e não recebe o amparo necessário para isso provoca um efeito dominó. No meu caso familiar, as cicatrizes são profundas para todos os envolvidos. Muitos mantém relações desnecessariamente conturbadas ou cortaram relações — o que também é extremamente doloroso –, simplesmente porque a sociedade não promoveu espaços seguros de diálogo e assistência para resolver esse tipo de questão que, diga-se, é bastante mais simples do ponto de vista terapêutico do que era antigamente.

Se, ainda hoje, é difícil encarar o diagnóstico e o estigma que um transtorno mental provoca, há algumas décadas, o assunto era impensável. As famílias simplesmente passavam por cima dessa hipótese e seguiam a vida, considerando que o "destempero" da pessoa que precisava desesperadamente de tratamento seria "apenas falha de caráter". Puxando pela árvore genealógica, quase todo mundo que tem um transtorno deve ter convivido com alguém que não teve oportunidade de se tratar. Por essas e outras, o acesso a especialistas de saúde mental deveria ser tão democrático quanto o acesso a qualquer outro serviço de saúde.

O problema é global

De acordo com dados da OPAS Brasil (Organização Pan-Americana de Saúde), os sistemas de saúde ainda não responderam adequadamente à carga dos transtornos mentais. Como consequência, a distância entre a necessidade de tratamento e sua oferta é ampla em todo o mundo. Em países de baixa e média renda, entre 76% e 85% das pessoas com transtornos mentais não recebem tratamento. Em países de alta renda, entre 35% e 50% das pessoas com transtornos mentais estão na mesma situação.

Não manejamos bem os temas de saúde mental no debate público porque nunca aprendemos a falar disso na esfera íntima, doméstica. A saúde mental é constitutiva de todas as nossas relações, mas, se o Estado negligencia a questão em todas as partes do mundo, talvez seja necessário elevar o nível da discussão e da militância.

Suspeito que o uso de memes ou discussões rasas sobre o surto de Kanye West não sejam os melhores caminhos. Talvez seja melhor tentar bater esse papo primeiro aí na sua casa, depois na internet.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.