Por que “Evidências” ainda é o maior hit de todos os karaokês?
Luiza Sahd
01/08/2018 05h00
Algo me diz que a música sertaneja é nossa última trincheira anti-cinismo no século XXI.
Na última vez que passei por São Paulo, em fevereiro, senti um estranho conforto ao escutar os berros "AINDA NÃO ME CHAME DE MEU NEGO/ AINDA NÃO ME CHAME DE BEBÊ" em tudo quanto era boteco sujo por onde parei pra tomar uma cervejinha durante a viagem. Apesar de ser uma mulher empoderada que paga seu próprio um bolovo com aparência duvidosa (e sem medo de julgamentos estéticos e sociais), me emociono toda vez que escuto Apelido Carinhoso. É até engraçado, porque eu destacaria Gusttavo Lima entre as dez personalidades mais tóxicas do Brasil… mas como é bom que alguém ainda fale de amor sendo "brega" — e que ganhe dinheiro por causa disso.
No momento, não existe nada mais fora de moda do que sofrer por dor-de-cotovelo. Alguém precisa continuar fazendo esse trabalho sujo antes que os millennials monopolizem o mercado fonográfico com aquelas músicas blasés de quem só se permite ficar triste quando o copo do Starbucks vem com o nome escrito errado. Então, particularmente, eu pagaria pra que mais gente berrasse por amor na TV, como Chitãozinho & Xororó faziam cantando "Fio de Cabelo" quando eu era pequena. Saudades.
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Se você é xereta ou tem o péssimo hábito de escutar conversas de estranhos ao seu redor (a deliciosa audição panorâmica), já deve ter percebido que os conselhos de amor que escutamos hoje em dia quase sempre seguem o padrão "essa pessoa não te merece", "bola pra frente", "o mar tem muito peixe" e congêneres. O pessoal não pode viver mais uma dor-de-corno pública sem ser perturbado. Pra onde essa gente foge? Pro karaokê.
É como dizem os antigos: a bebida entra e a verdade sai. Quando temos um copo na mão e um microfone na outra, sai em forma de "Chega de mentiras/ De negar o meu desejo/ Eu te quero mais que tudo/ Eu preciso do teu beijo". O alívio do pessoal que vai berrar junto, quando a música acaba, é visível.
A música sertaneja sempre foi e ainda é esculhambada como uma arte menor no cancioneiro popular brasileiro — que é mesmo um dos melhores do mundo. Mas ela não é menor. Menor é a coragem de quem ouve aquilo tudo e não pensa nas vezes em que arrastou os chifres no chão.
A música sertaneja também é um privilégio nosso e está aí para ser aproveitado. Morando fora, acho muito chato ter que sofrer escutando Julio Iglesias ou coisa que o valha. Bom mesmo é lavar a louça usando o antebraço pra limpar as lágrimas que rolam quando o Zezé grita "Diiiiiiiiiiiga/ Se lhe deixei faltar amor/ Se o meu beijo é sem sabor/ Se eu não fui homem pra você". Quem finge que nunca se perguntou isso aí é poser.
No mais, é tão bonito ver que está tudo bem com o homem que sofre (e com qualquer pessoa que se permite sofrer um pouquinho antes de voltar a ficar feliz).
Não podendo ficar de braços cruzados enquanto vejo meus amigos fingindo que tá tudo ótimo depois de tomar um pé na bunda, fiz uma pequena playlist com a ajuda de alguns deles para lembrar que não somos de ferro. Deixo aqui para todo mundo que também não seja.
É claro que você pode decidir sofrer de maneira mais sofisticada, ouvindo Milton Nascimento ou Nana Caymmi. Em todo caso, esteja consciente que berrar a plenos pulmões que "Eu entrego a minha vida/ Pra você fazer o que quiser de mim" faz efeito mais rápido. E o melhor: quem é inteligente não deixa de ser quando fala a língua universal dos magoados. Pode confiar.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.