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Luiza Sahd

‘Years and Years’: seriado prova que já vivemos em um presente distópico

Luiza Sahd

28/08/2019 04h00

"Years and Years", da HBO. (Foto: Divulgação)

Quem teve coragem de ler os jornais esta semana sabe que as presepadas políticas de Jair Bolsonaro envolvendo as queimadas na Amazônia e as relações diplomáticas com a França e com o G7 testaram não só os nervos da população brasileira, mas de todo mundo que tenha um pingo de preocupação com o colapso ambiental que o planeta experimenta na última década.

Sempre que a falência dos nossos recursos naturais entra em pauta, a gente costuma pensar melhor no futuro, inclusive para que haja futuro. Mas e se alguém contasse que nosso presente já é o tal futuro distópico de que tanto se fala na ficção? Foi também uma ficção que chegou para nos dar esse toque amigo: em parceria com HBO e BBC, produtor de TV galês Russell T. Davies lançou "Years and Years", uma série que mostra como a nossa realidade é uma bomba que já explodiu — e que foi detonada, principalmente, pela nossa falência moral e afetiva.

O primeiro episódio da série mostra a hipotética reeleição de Donald Trump e termina com o líder norte-americano lançando uma bomba nuclear na China. É um belo (e infelizmente factível) começo de enredo. Daí a quantidade de gente falando sobre "Years and Years" na internet.


Como era de se esperar, o mundo não acaba com a guerra nuclear entre China e Estados Unidos no primeiro episódio da série, mas ele piora bastante. Assim como acontece no cenário político do Brasil e do mundo, Years and Years mostra que tudo sempre pode piorar, mesmo que o apocalipse não chegue. Ao longo da trama, aliás, o apocalipse acaba parecendo uma saída mais razoável do que a triste realidade que se coloca. Isso não quer dizer que Davies tenha se esquecido de falar das belezas do mundo em meio ao caos. Muito pelo contrário.

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Um golaço nessa parceria entre BBC e HBO foi a escolha dos personagens ternos e complexos que nos conduzem pelo enredo, que se passa entre 2019 e 2030. Ou seja, logo ali. Quem achava o mundo mais aprazível em 2008 sabe que a gente vai piscar e acordar em 2030, com saudades dos "bons tempos" de 2019. Mas, voltando aos personagens da trama, Years and Years nos apresenta aos Lyons, uma família inglesa de Manchester composta por figuras cuidadosamente heterogêneas: gente branca, negra, oriental, transsexual, pobre, rica, hétero, LGBTQ, com e sem deficiência. O que chamamos de minorias é maioria entre os Lyons — e nem sempre as pessoas que costumam ser invisibilizadas são boazinhas, para alívio dos espectadores com bom senso.

A matriarca Muriel (Anne Reid) é a dona de uma grande propriedade caindo aos pedaços que serve como refúgio e ponto de encontro de seus quatro netos, além dos respectivos filhos e agregados que protagonizam histórias que poderiam ser nossas. A casa decadente de Muriel serve, também, como metáfora para a situação atual do planeta.

Por que assistir?

Ao terminar o primeiro episódio, você provavelmente vai desconfiar que os produtores estavam de olho em Jair Bolsonaro para construir a personagem Vivienne Rook (brilhantemente interpretada por Emma Thompson). A líder política emerge de um cenário de total desesperança em "tudo o que está aí", criando um partido independente chamado 4 estrelas — "porque somos pessoas imperfeitas em evolução", ela diz, fazendo sempre o número 4 com as mãos. Rook sofre de uma verborragia agressiva e impertinente que ironiza minorias como se elas se vitimizassem, e não como se fossem, efetivamente, vítimas de um sistema sociopolítico perverso. Até o sorriso forçado da personagem se parece ao do nosso presidente na icônica foto em que ele ensina uma criança a fazer o gesto da arminha. É fascinante e assustador, tudo ao mesmo tempo.

 

A família Lyons, bem como toda família tradicional brasileira, tem membros favoráveis e contrários ao discurso raivoso de Rook. O que é mais bonito: as pessoas que se deixam seduzir por uma liderança política tão controversa não são essencialmente boas ou más. Elas são, antes de tudo, pessoas desesperadas. Os membros da família que criticam com veemência o discurso virulento de Rook sofrem de angústias parecidas; o que muda é a convicção pessoal de cada um sobre como sobreviver à realidade caótica que os cerca.

No desenrolar da história, somos incitados a nutrir ranço em algum grau por Celeste (T'Nia Miller), a esposa negra, riquíssima e deslumbrante de Stephen (Rory Kinnear), o neto mais rico de Muriel. O casal tem duas filhas adolescentes, sendo que uma delas é Bethany (Lydia West) — uma garota deprimida que não se identifica como humana, mas transumana. Ela gasta todo o dinheiro que ganha para fazer uma cirurgia de transição a ciborgue e usa filtros tipo os do Snapchat para se comunicar em realidade aumentada com as pessoas que estão diante dela.

O idealizador de Years and Years já confessou que usou os típicos grupos de família no WhatsApp como inspiração para escrever as cenas em que os Lyons se comunicam em chamadas grupais no Signore, um software que mantém a família conectada durante todos os episódios. Lembra quando a gente só falava com os parentes no Natal e em outras datas comemorativas? Agora, o WhatsApp estreitou essa convivência e, na série, o Signore tem o mesmo papel. É ali que os estranhamentos entre os familiares acontecem na trama. De novo, uma metáfora ótima de Davies para o que acontece conosco desde já.

O ponto mais elogiado de Years and Years na mídia tem sido a forma didática como o roteiro desenha que as mudanças sociais de qualquer ponto do mundo acabam afetando nossos costumes e relações familiares em um mundo globalizado. Bom exemplo disso é o que acontece com Stephen, que perde sua fortuna durante uma crise global dos bancos e acaba precisando trabalhar como entregador de comida de aplicativos — além de cobaia para testes de medicamentos. Muita gente faz isso, mas nunca pensamos que uma pessoa milionária poderia acabar experimentando esses trabalhos.

As inversões de papéis sociais narradas por Davies não terminam aí. Você provavelmente vai ouvir falar do quarto episódio de Years and Years, que é quando o neto mais doce de Muriel, Daniel (Russell Tovey), morre afogado tentando cruzar a fronteira para Londres por mar, como fazem tantos refugiados que saem nos jornais diariamente.

O acidente acontece porque Daniel — um cara inglês de classe média — tenta salvar o namorado ucraniano (Maxim Baldry) de uma deportação política. Quando o casal se lança ao mar em um bote precário e quem morre não é o refugiado ucraniano, a cena se torna muito poderosa. O que vem depois dela, também. As atuações são primorosas e a audiência se chocou muito com esse desfecho. Somos nós essa audiência: não nos chocamos com as imagens de imigrantes afogados diariamente no Mediterrâneo e ficamos passados quando um inglês de classe média "que não precisava disso" tem o mesmo final trágico de tanta gente periférica.

 

Outra questão polêmica e atual bem trabalhada na série é a transsexualidade do filho de Rosie (Ruth Madelay). Tanto a mãe — que é eleitora de Vivianne Rook — quanto o resto da família tomam com naturalidade a identificação de Lincoln (Adam Little) com o sexo feminino. Já o transumanismo de Bethany deixou os parentes apavorados, provando que as pessoas se assustam mais com o que desconhecido do que aquilo o que é apenas diferente. A normalização da transsexualidade é uma gotinha de esperança no oceano de aflições que Years and Years apresenta.

Uma das mensagens mais emblemáticas e positivas do programa é provavelmente essa: a tecnologia não é a nossa inimiga. O inimigo somos nós mesmos e o que fazemos com a tecnologia. Para que servem as tecnologias que temos criado?

Por que não assistir?

A trilha épica de Years and Years pode provocar muita ansiedade em pessoas sensíveis. Por falar em ansiedade, um bom conselho ao começar a assistir a série é desistir de assimilar todas as notícias abordadas em cada episódio. Isso só aumentaria a sensação de FOMO que já experimentamos todos os dias quando tentamos, em vão, ficar por dentro de tudo o que acontece no mundo diariamente.

Years and Years não é sutil; ela é, inclusive, hiperbólica — como são hiperbólicos os nossos tempos. A política em um mundo globalizado acaba interrelacionando diversas nações e Davies é brilhante ao deixar claro que uma treta na China pode afetar, sim, os rumos da sua vida no Brasil ou em qualquer parte do mundo.

Diversos aspectos da história são angustiantes. A gente termina a série com certezas desagradáveis sobre nosso presente distópico e sobre o que nos espera nos próximos anos: precarização do trabalho, radicalismo político e crimes de intolerância ainda podem perturbar muito esse mundo mundo já colapsado.

No último episódio da temporada, enquanto a polícia apontava armas, o povo apontava celulares para transmitir ao mundo a crueldade dos campos de refugiados e da violência institucional. O uso da verdade como arma é um recurso narrativo muito poético, mas será que já não estamos anestesiados demais pelo excesso de realidade? O monólogo de Muriel, que fala sobre nossa responsabilidade nisso tudo já nasceu como clássico instantâneo.


A crítica especializada se mostrou reticente com o desfecho de Years and Years porque ele adota um tom esperançoso bem diferente daquele que deu a tônica da trama inteira. Se levarmos o monólogo de Muriel ao pé da letra, não deveríamos perder tempo assistindo séries críticas sobre o nosso momento político; a gente deveria estar fazendo algo a respeito desse momento político.

O epílogo de Edith (Jessica Hynes) — a ativista da família — falando sobre amor e tentando se tornar a primeira transumana da história também incomodou os fãs da série, mas essa é talvez a coisa mais importante de Years and Years: no final da vida ou do mundo, com o que você se preocuparia a não ser com o amor?

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.