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Luiza Sahd

Redes sociais viraram corredor polonês -- e colaboramos sem perceber

Luiza Sahd

21/03/2019 04h00

Óclinhos da vitória: síntese perfeita de tudo o que temos feito errado na internet (Foto: iStock)

Mais do que um talento natural para a socialização, o vício do brasileiro em redes sociais deve ter alguma ligação com a nossa carência de espaços públicos de convivência segura. Repare aí: assim como eu e todas as pessoas mais jovens do que os nossos avós, você provavelmente convive mais com amigos e parentes via Instagram do que via sorvetinho na praça perto de casa. Digamos que, ultimamente, é mais prático, rápido e seguro estar a um clique das pessoas do que a um passo delas.

Não é novidade nenhuma que essa dinâmica, em algum momento, mandaria a nossa capacidade de humanização para as cucuias. A notícia chata é que parece que esse momento chegou mesmo.

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Na convivência física, ninguém que esteja bom das ideias agride o outro sem sentir algum receio de ferir ou sair ferido. Na internet, as regras de autopreservação e respeito (chamadas antigamente de "bom senso") são outras. Avatares não choram e não sangram quando são linchados — e talvez isso confunda um pouquinho a nossa percepção de que as pessoas por trás deles, sim.

Para piorar, o juízo sobre o que é certo ou errado na internet vem em forma de curtidas, não de diálogo.

O like vale mais do que barras de ouro

Em 2004, quando o Orkut chegou ao Brasil — e ficamos todos fascinados com as redes sociais — não estava no roteiro a parte em que passaríamos a ganhar curtidas pelo que dizemos online. Essa métrica esquisita de afeto e razão chegou depois, mas está presente em praticamente todas as redes que frequentamos agora.

Na década passada, uma briga na internet era diferente porque não existiam os likes. Quem já presenciou alguma treta em fóruns antigos sabe que cada resposta tinha o valor de uma resposta apenas. Agora, "ganha" a discussão quem tem mais curtidas e compartilhamentos. Quem perde com isso é a nossa capacidade de julgamento e, em especial, de empatia. Um xingamento com mil curtidas vale mais do que qualquer ponderação equilibrada (que eventualmente se perde entre dezenas de comentários despejando combustível na fogueira).

Discordar dos outros na vida real é um exercício desafiador de diplomacia. Discordar nas redes sociais virou escape para toda a violência e covardia que a gente carrega atravessada na garganta. Extravasar poderia até ser bom, mas, nesse caso, tem servido basicamente para que as pessoas produzam uma nova leva de neuroses e distribuam em grandes rodadas, de graça, para a galera.

A internet não é mais um parquinho

Parece que foi ontem a última vez em que acreditamos que o momento de entrar nas redes sociais era a hora de se embriagar de memes e esquecer os problemas. Saudades. Agora, a gente faz o login coordenando com o sinal da cruz e espera pelo pior.

As notícias de ultimamente não ajudam, mas nós também não temos nos ajudado muito. Expectativa: a abundância e a agilidade de informações disponíveis na rede poderia ser uma ferramenta para trazer consciência dos fatos e reunir semelhantes nas batalhas diárias. Realidade: a rede virou um espaço para troca de chumbo entre quem discorda e até entre pessoas que pensam parecido. Aparentemente, a meta ali é ganhar discussões por meio de curtidas — e todo o resto é secundário.

Um ícone perfeito da rede como faroeste são os óclinhos em memes como este. Ganhou a discussão? Ganha os óculos. Você acha esse meme ruim? Eu também, mas isso não quer dizer que não acabamos agindo com a mesma lógica de que, em uma discussão online, alguém tem que humilhar alguém na argumentação. Fica a dúvida do que o vencedor ganha com isso fora as curtidas.

Não existe usuário ativo de redes que não tenha perdido tempo e energia vital com picuinhas que não melhoram o entorno em absolutamente nada. O problema real é quando isso vira um estilo de vida. Como moradora da internet há pelo menos 15 anos, me pego todos os dias ponderando e me arrependendo de atitudes online que não me produzem nada além de acréscimos de angústia. Deve ser uma prática tipo atividade física, para fazer regularmente, porque nunca terminei de resolver essa questão.

A péssima gestão de raiva e frustração não é privilégio da galera moderna que se meteu nas redes procurando espaços mais seguros de convivência. Ela é, na verdade, o motivo pelo qual nos enfiamos na internet e devastamos tudo por aqui também.

Em algum lugar, real ou virtual, precisamos melhorar. Não há mais like que preencha o rombo da nossa desconexão com os outros.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.