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“Pornografia inspiracional”: lenda da fada sensata só atrapalha mulheres

Luiza Sahd

18/02/2020 04h00

 

A cantora e participante do BBB20, Manu Gavassi, convoca seu exército de fadas sensatas. (Foto: Reprodução/ Instagram)

 

"No futuro, todos terão seus quinze minutos de fama". Com esta frase, o pintor e cineasta norte-americano Andy Warhol acertou quase tudo sobre o ano de 2020. No presente, todo mundo acaba tendo seus quinze minutos de fama como fada sensata para, em seguida, ter outros vários minutos de cancelamento.

O roteiro de ascensão e queda dos ídolos na internet varia pouco: por causa de algum gesto ou projeto admirável, pessoas anônimas recebem notoriedade instantânea nas redes sociais; ao cabo de alguns dias, elas ganham milhares de seguidores e elogios açucarados como "fada sensata", "cristal perfeito", "nunca errou" e por aí vai. Quando isso acontece, pode esperar. Cedo ou tarde, a infalibilidade dessa figura pública é posta à prova pelos internautas mais iconoclastas — e o cancelamento vem.

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A lenda da fada sensata atrapalha qualquer ser humano, mas ela atrasa as discussões sobre feminismo de forma muito particular. Em um excelente artigo publicado no jornal "The Guardian", a jornalista britânica Helen Lewis explica como o hábito de incensar mulheres revolucionárias — e torná-las ícones feministas indefectíveis — pode ser prejudicial às causas coletivas e a elas próprias, individualmente.

Em sua análise, Lewis menciona algumas figuras femininas históricas que, para se enquadrar na narrativa de "pornografia inspiracional" que tanto amamos consumir, tiveram aspectos controversos de suas biografias convenientemente ocultados pela grande mídia — como teria sido o caso de Coco Chanel, que além de grande musa inspiradora de novos costumes e empoderamento, foi namorada de um oficial nazista.

Acreditando que certas mulheres nunca erram, vamos perdendo referências importantes quando se descobre que alguma dessas figuras já pisou na bola em algum sentido — como todas nós, aliás. Também já vimos esse filme algumas vezes em nossas timelines: mulheres que ficam em evidência por conta de iniciativas extraordinárias também são, atualmente, as maiores candidatas ao cancelamento popular.

Na última semana, Cris Bartis e Juliana Wallauer, apresentadoras do podcast Mamilos — que está entre os 10 mais ouvidos do Brasil em 2019 — passaram de cristais perfeitos a canceladas do mês por não terem garantido que uma de suas entrevistadas tivesse espaço adequado para falar sobre seu trabalho em um episódio do programa.

As apresentadoras pediram desculpas publicamente, sugeriram refazer a entrevista e tiraram o episódio problemático do ar. Parece que não bastou: o escrutínio para cima do Mamilos foi tão intenso que a própria especialista prejudicada no programa — Nath Finanças, que até a publicação deste post mantém o status de fada sensata — precisou vir a público pedindo a suspensão do linchamento de Bartis e Wallauer nas redes.

Desconstruindo as fadas

Se a manutenção da memória de figuras históricas depende de distorcer o passado delas ou de cobrar que elas sejam infalíveis pelo resto de suas vidas, tudo indica que não vale a pena incensar ninguém. Normalmente, os homens que erram — e homens que erram muitíssimo —  têm o direito às falhas mais garantido. Por um lado, eles não são pintados como fadas sensatas com muita frequência. Por outro, a sociedade é mais rígida quando julga os erros femininos.

Nas palavras de Emily Nussbaum, vencedora de um Prêmio Pulitzer de crítica televisiva, "quando alguma mulher é colocada num pedestal, parece que a calcinha dela fica imediatamente à mostra". É mais ou menos o que pode acontecer caso a gente tente seguir à risca a definição de fada sensata feita pela cantora e participante do BBB20, Manu Gavassi — que, curiosamente, tem sido incensada e cancelada simultaneamente nas redes sociais.


Um bom motivo para que a gente desista de esperar perfeição feminina é este: a luta pela garantia de direitos das mulheres já é, por si só, suficientemente complicada. O feminismo tenta dar conta das demandas de metade da população mundial (pessoas de várias etnias, com diferentes necessidades, seguidoras de costumes e religiões diversas). Se a gente não leva em conta que elas podem acertar demais e falhar miseravelmente na mesma encarnação, ficamos fadadas a obedecer àqueles que sempre puderam errar. Ninguém nunca prometeu que os homens seriam infalíveis. Para que cobrar isso das mulheres que estão em evidência?

Atire a primeira pedra quem nunca cancelou fadas sensatas, mas incensando menos as pessoas exemplares, a gente economiza a fadiga e o desodorante gasto para cancelá-las mais tarde.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.