Se você cansou da 'ditadura do autocuidado', se cansou com razão
Luiza Sahd
17/05/2019 04h00
Não há meio de alinhar os chacras da pessoa que não faz o básico (e chato) por si mesma. Ilustração: Reprodução/ Priscilla Menezes)
Não é acaso que o autocuidado tenha virado um dos assuntos mais populares da internet nos últimos anos. Faz todo sentido que isso aconteça durante uma crise global de estresse. De tanto ler sobre o termo, muita gente tem se queixado de uma "ditadura do autocuidado" — que mais parece conversa mole com segundas intenções publicitárias.
Em todos os cantos das redes sociais, há alguém ou alguma empresa te aconselhando a meditar, fazer esporte, ler um livro ou fazer as pazes com um parente chato. Te contar como se constrói essa rotina impecável de sucesso: ninguém quer.
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Quando pensamos sem compromisso sobre a ideia geral de autocuidado, ela parece mesmo uma atitude elitista que envolve luxos acessíveis para poucas pessoas. Geralmente, aquelas que têm tempo livre para discutir bem-estar nas horas vagas (e não as que estão em situações-limite, sem oportunidade de pensar nessas teorias ou, simplesmente, sem "horas vagas").
Talvez a confusão entre autocuidado e auto-indulgência comece aí mesmo: quem mais precisa de autocuidado são as pessoas que não têm condições de sentar e concluir que merecem dedicar algumas horas do dia exclusivamente a si mesmas. Então, elas apelam para algum prazer rápido e autoindulgente, tipo assistir um programa ruim de televisão ou jogar sei lá quanto tempo de video-game. Certo?
Não sei. Estava eu caminhando tranquilamente pela internet na última semana quando fui atingida por essa bala perdida:
A primeira e mais importante conclusão sobre isso é que ninguém garante que uma pessoa privilegiada (com acesso a descanso remunerado, viagens, cultura e massagem) sempre terá sabedoria para discernir autocuidado e auto-indulgência.
Dos erros que cometi com mais frequência na vida, destaco: sempre achei que socializar com amigos, por exemplo, era uma medida de autocuidado — principalmente quando o meu impulso inicial era inventar uma excelente desculpa para ficar sozinha em casa fazendo mil nadas. O segundo erro que mais cometi foi o de achar que ficar em casa sem forçar socialização também poderia ser um gesto de autocuidado. Na verdade, o mais provável é que o autocuidado esteja em outros lugares. Inclusive em lugares mais democráticos e menos luxuosos.
Sempre me fascinei com a boa disposição e o bem-estar de algumas mulheres da minha família. Com um monte de criança demandando, com marido mala, com problema financeiro, lá estavam elas: de corpo cansado e mente sã. Não é possível que isso não tenha nenhuma relação com esse lance aí de trocar os lençóis e tomar remédio direitinho. Autocuidado é ou deveria ser a atitude de começar pelo básico para, depois, viver outros prazeres mais ambiciosos.
Morando em Madrid, conheci um spa público com preços acessíveis (4€). Meu radar de autocuidado quase explodiu quando tomei conhecimento e, depois de 3 horas de sauna, massagem e piscinas térmicas, saí de lá contente por finalmente ter descoberto o modesto segredo da felicidade. A descoberta seguinte foi que esse relaxamento não duraria muito ao chegar em casa. Mal abri a porta e lembrei que todo o resto da minha vida estava um caos.
Uns meses depois da euforia inicial, só me resta classificar o prazer do spa público mais como auto-indulgência do que como autocuidado. Não é que seja errado fugir da realidade por umas horas para sentir prazer no corpo. Acontece que, se não uso as horas úteis para lidar com os problemas práticos (e mais urgentes), os problemas vão estar me esperando na volta do spa, bem quentinhos na minha cama, alisando o travesseiro e me esperando deitar.
Por mais paradoxal que pareça, as pessoas com amplo acesso à informação têm sido aquelas que mandam muito mal no quesito autocuidado. A gente vive em uma velocidade tão vertiginosa na tela dos nossos celulares que acaba acreditando, de verdade, que precisa sentir prazer com uma frequência irreal e impossível.
Nada disso é uma grande novidade, mas a valorização dos gestos mais "chatos" de autocuidado não vende tão bem nas mídias que acessamos para buscar autoindulgência — como é o caso das redes sociais. Se a tal "ditadura do autocuidado" propagada em todos os cantos da internet já te incomodou em algum momento, deve ser porque você está descobrindo que boa parte desse discurso é uma falácia. O verdadeiro autocuidado não é muito fotogênico.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.