Topo

O que temos a perder com o politicamente correto?

Luiza Sahd

23/01/2019 04h00

Gesto de arminha: começa como brincadeira e termina com um pessoal baleado. (Ilustração: YeahYeahChloe)

O termo "politicamente correto", por si só, já é um porre. Se você colocar "politicamente" na frente de qualquer coisa deliciosa, ela se torna imediatamente horrenda. Experimente aí: "politicamente sundae de chocolate", "politicamente lasanha", "politicamente praia ensolarada". Não tem condições. Nada funciona bem com um "politicamente" na frente. Assim sendo, a gente deveria pensar mais em termos de "correto" e "incorreto" e deixar esse "politicamente" de lado, principalmente porque ele tem pinta de delírio persecutório — mas não de quem você está imaginando.

Sabe como essa história de "politicamente correto" caiu na boca do povo?

Durante a década de 1990, o perfil do estudante que ingressava nas universidades norte-americanas mudou radicalmente. Nos anos 1970, em uma instituição como a UCLA – Universidade da Califórnia em Los Angeles, 55% dos alunos eram homens e 91% eram brancos. Em 1992, os rapazes já eram minoria (47%) e 20% dos alunos já eram de outras raças. As mudanças políticas nos EUA dos anos 1980 diversificaram a população nos meios acadêmicos — e acabaram promovendo a convivência entre pessoas que não costumavam dividir os mesmos espaços. Como a gente sabe, qualquer convivência é um desafio; se for com estranhos, pior; se os estranhos discordarem sobre quem manda no quê e sobre justiça, acontece o que aconteceu por lá.

O termo "politicamente correto" era usado de maneira muito dispersa nessa época, mas virou moda, mesmo, quando estudantes (majoritariamente homens e brancos) sentiram a hipervigilância por parte dos novos alunos que chegavam às faculdades. Os novatos negros começaram a denunciar agressões racistas ao mesmo tempo em que mulheres passaram a registrar os estupros e episódios de discriminação nos campus. Os alunos brancos diziam que essa galera nova estava exagerando e se vitimizando, mas as provas materiais dos episódios dispararam protestos em escala mundial na ocasião. Além de serem vítimas reais na maior parte das acusações apuradas, essas pessoas ganharam o rótulo de vitimistas — não importando se elas foram mesmo abusadas.

Tudo isso fica bem claro na série "Explicando", da Netflix. O episódio "Politicamente correto" mostra como o termo se alastrou para além das universidades, da mídia, dos EUA e, finalmente, virou um debate presente nos quatro cantos do mundo. 

Veja também

O que pior para o homem: lavar a privada ou fazer xixi sentado?

Você sabe diferenciar paquera de assédio?

Por que o apresentador do Jornal da Noite duvida das vítimas de João de Deus?

 

Depois de 30 anos você vê o resultado…

Da década de 1990 para cá, o mesmo que aconteceu nas universidades dos EUA virou situação clássica em todos os nossos ambientes de convivência coletiva. Com a entrada massiva de mulheres, negros, pessoas com deficiência ou LGBTQs em espaços que eram exclusivamente masculinos e caucasianos, basta que um indivíduo associado a minorias reclame de tratamento indigno para que nosso radar do "politicamente correto" comece a piscar.

Antes de decidir se uma pessoa é vítima ou está se vitimizando, você costuma se perguntar o que tem a perder caso opte por tratá-la de maneira "politicamente correta" ou, simplesmente, não-violenta?

Sugestão: pergunte-se sinceramente quais são os seus prejuízos reais por tratar uma pessoa trans pelo pronome que ela prefere, no que você sai lesado quando deixa de colocar apelido pejorativo em uma pessoa negra ou o que tem a perder quando não manifesta nojo de quem se relaciona romanticamente com alguém do mesmo sexo.

O que perdemos quando abandonamos todos esses hábitos de hostilização é, concretamente, a oportunidade de agredir o outro — sempre lembrando que não ganhamos nada além de aborrecimentos quando optamos por agredir.

Ser pacífico toma tempo, mas poupa energia

Em algum momento da vida, todo mundo associa a figura do sujeito pacífico com relaxamento ou apatia, mas isso é uma falácia. Até para entender como não machucar as pessoas gratuitamente, temos trabalho. Ser pacífico é um desafio constante porque pensar na coletividade toma tempo, mas esse exercício deveria ser costume de todo mundo que não pretende viver num entorno beligerante. O mundo ficou chato mesmo para quem morre de preguiça de refletir, se colocar no lugar do outro e mudar hábitos agressivos, mas provavelmente se tornou um lugar mais seguro para quem não é homem, branco ou ambos. 

Enxugando muito a questão, "politicamente correto" não é muito mais do que um slogan que virou queixume de gente indignada por não poder destratar minorias. Com isso em mente, fique à vontade para decidir o que é "mimimi": a revolta de quem é maltratado ou a ira de quem é proibido de maltratar os outros.

 

Não custa nada ser gentil. Então, por que fazer uma gentileza dói tanto em algumas pessoas?

As discussões em torno do "politicamente correto" sempre geram um quiprocó no qual alguém grita que o mundo é como é, não como a gente sonha. Nessa hora, é importante lembrar que o mundo está mudando desde o Big Bang — e nem sempre houve entusiasmo por parte de todos os afetados pela mudança. Mas uma coisa é certa: uma vez que a sociedade muda, é impossível voltar atrás.

Na era da informação e tecnologia, as mudanças acontecem mesmo em um ritmo alucinante e difícil de acompanhar. O ser humano que se mantém curioso e adaptável às novas realidades vive melhor, principalmente por não tentar controlar o incontrolável. Quanto aos sujeitos não-adaptáveis, Darwin já previu o destino deles em 1859. 

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

O que temos a perder com o politicamente correto? - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.