Topo

Sentir preguiça é uma ótima resolução de Ano Novo

Luiza Sahd

03/01/2019 04h00

Um triste retrato da primeira semana de janeiro. (Ilustração: Yuval Robichek)

No hemisfério norte, lido com a preguiça durante seis meses ao ano, no mínimo. Por aqui, a luz solar dura menos do que eu gostaria para me sentir feliz e bem disposta. O resultado é meio dramático — e digito essas palavras com a cara na janela, desesperada de amor por cada raio UV que possa incidir sobre a minha pele.

Durante o verão, sou uma usina de motivação e criatividade. No frio, tudo o que estou fazendo começa a desandar pontualmente às 16h, quando o sol começa a ficar tímido. Já levei o assunto para um médico, pro divã e para amigos — mas ninguém sabe recomendar nada além de rotina saudável espartana ou mudança para as Ilhas Canárias.

Na impossibilidade de me mandar para um paraíso tropical, me sinto preguiçosa a cada vez que acordo e sento num feixe de sol ao invés de adiantar as missões do dia. Isso me deixou curiosa sobre a diferença entre preguiça, cansaço e desmotivação. Eu não sabia qual das três era a inimiga que tornava minhas tardes tão improdutivas nessa época.

Veja também

Se não entendi nada errado, preguiça é quando temos compromissos que não queremos cumprir porque achamos algo mais interessante para fazer; cansaço é o extremo oposto, porque não suportamos fazer nada além do monte de coisas que já fizemos; desmotivação é quando a gente não vê motivos razoáveis para fazer o que precisamos.

Analisando as definições, já descarto o cansaço porque nenhuma pessoa saudável deveria acordar exausta depois de dormir durante oito horas. A desmotivação também não é o meu problema: gosto do meus trabalho e, todos os dias, penso em outros mil que quero fazer além dele. Ao que tudo indica, sou uma preguiçosa crônica. Pode ser que você também seja e tenha vergonha de assumir, mas será que isso é um desvio de caráter grave?

O crime da preguiça

Estirada no chão da sala enquanto encenava uma fotossíntese, me permiti ser preguiçosa sem culpa durante uma hora inteira. No final, percebi que aquilo a que chamamos de vadiagem é uma forma de armazenar contentamento. Não fazer nada além de me aquecer e ficar em silêncio provoca muita satisfação, mas não é curioso que eu me sinta uma crápula sempre que faço isso ao invés de ser produtiva?

É estranho que uma sociedade como a nossa, obcecada pela felicidade, condene tanto a preguiça — inclusive porque, em geral, somos chamados de preguiçosos por gente que também não quer fazer o que deixamos de lado. Freud explicaria, mas Deus me livre de tentar detalhar o conceito de projeção nesse espaço modesto.

Se você acompanhou o raciocínio até aqui e ainda acha que a preguiça é uma das dez pragas do Egito, durma com essa frase de Bill Gates: "gosto de contratar pessoas preguiçosas para executar trabalhos duros porque elas sempre encontram uma forma mais fácil de fazê-los". Quem também falou disso foi Raul Seixas, só que ele usou palavras mais doidas: "a formiga só trabalha porque não sabe cantar".

Legalize a preguiça!

Trabalhando de casa, criei o hábito de dar um cochilo curto sempre que sinto dificuldade demais na conclusão de alguma tarefa. Comecei a achar que isso caracterizava depressão, que eu estava tentando "me sedar" de problemas e responsabilidades, mas lembrei da avó que me criou. Aposentada hiperativa, ela tinha picos de produção de quitutes, pensamentos e atividades sociais ou domésticas. Entre uma coisa e outra, tirava uma soneca. Nunca deu errado: aos 87 anos de idade, está mais lúcida e saudável do que boa parte dos meus amigos jovens.

Associar preguiça à improdutividade tem sido um tiro no pé para a nossa geração. Se a preguiça não fosse a mãe e o pai da criatividade, a gente ainda estaria cruzando oceanos à nado, para dar um exemplo ínfimo. Essa moleza irritante que sentimos diante de tarefas maçantes é o nosso inconsciente buscando equilíbrio: ela mostra que sabemos aproveitar o descanso, o recolhimento, o silêncio e a introversão. Isso só pode ser moralmente condenável em um mundo muito doente.

A gente sabe que poucas pessoas têm o privilégio de sentir preguiça e descansar, mas isso não quer dizer que seja errado sentí-la. De tanto sentir preguiça e não fazer uma pausa é que as pessoas adoecem de cansaço e desmotivação.

Quando sua preguiça te cutucar de novo, tente ser generoso consigo mesmo e note que isso é apenas o seu corpo manifestando uma vocação para a felicidade. Talvez isso já seja um bom pacto com a preguiça: ela te mostra o lado bom da vida e você pode prometer uns instantes a ela para, depois, fazer o que quer que seja com mais vontade e satisfação.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Sentir preguiça é uma ótima resolução de Ano Novo - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.