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Para briguentos, fingir demência pode ser a melhor saída

Luiza Sahd

12/09/2018 04h00

Nem a Afrodite aguenta mais viver fazendo pose. (Foto: Reprodução/ andcrespi)

Conta minha mãe que, quando eu tinha menos de um ano de idade, estive prestes a enfiar minha mãozinha em um prato de sopa pelando, num domingo qualquer que terminaria fatalmente no hospital. Ao se dar conta de que não me alcançaria a tempo de impedir o acidente, minha mãe fez o que só as mães nervosas sabem fazer com perfeição: soltar aquele berro que paralisa até decolagem de avião.

A notícia boa é que não me queimei; a ruim é que comecei a chorar de susto, perdi o ar, fiquei com os lábios arroxeados e desmaiei. Todo mundo que estava em casa quase desmaiou junto, claro. Acordei e fui adulada como nunca.

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Na época — 1986 — nenhum médico detectou com exames o que poderia estar fazendo um bebê saudável como eu ter desmaios recorrentes, mas diz a lenda que eles se repetiam a cada vez que eu me assustava ou era contrariada… até que um homeopata recomendou me colocar em água fria para reverter a falta de ar. Voltei a desmaiar apenas em 2016 (mas foi por pressão baixa mesmo).

A história dos desmaios na primeira infância veio à tona na minha adolescência, quando comecei a apresentar sintomas de transtornos de ansiedade. Como já contei aqui, leio a ansiedade como sinal inequívoco de que preciso desacelerar. Provavelmente, já vim de fábrica meio estressada e, ao longo de mais de três décadas, arrumei tretas nos mais variados contextos, sem discriminar idade, raça, condição social ou periculosidade dos oponentes, tal qual faria um chihuahua. Dos chefes aos paqueras, incluindo as ocasiões em que adotei brigas alheias, acreditei por tempo demais que a gente tem que ficar explicando para as pessoas o que achamos que é certo. Acreditei até que as pessoas se importam com certo e errado.

A sorte é que não há nada como um dia após o outro — com noites bem cansativas entre eles — pra gente desistir de reformular o mundo, as pessoas queridas e até a própria vida. No último ano, tive tantos problemas burocráticos e de saúde para resolver que precisei me tornar a pessoa que mais temia lidando com problemas secundários: o ser humano que finge demência.

O estopim rolou quando um grupo de senhores me parou na rua pedindo para bater uma foto deles. "Tenta fazer todo mundo sair na foto", orientou um. Olha o desafio: fazer cinco homens abraçados saírem no mesmo quadro. Peguei ar para começar a palestrar sobre mansplaining e vi que nem fôlego pra isso eu tinha; decidi bater o retrato dizendo "olha, aqui na tela só consigo enquadrar três, sinto muito". Eles ficaram sem reação, me olhando com pena, até eu devolver a p*rra do celular com a foto perfeitamente enquadrada e o moço rir do próprio pedido ridículo.

Assim como acontece com a gente que é duro demais consigo mesmo, pode acontecer de os outros também precisarem de um tempo para se dar conta de que estão fazendo papelão por aí. Tudo o que fiz, de tão cansada, foi começar a dar esse tempo para esse pessoal escutar a própria voz.

Fingir demência é muito bom porque você não precisa gastar latim respondendo desaforo: escutando um ao vivo, o ideal é franzir os olhos e inclinar a cabeça igual cachorro confuso com comando desconhecido. Nessas, o outro vai precisar repetir o que disse — e as chances de que realmente escutar o que sai da própria boca são muito maiores.

À distância, o trâmite é mais fácil ainda porque você pode rir tranquilo sem demonstrar que tá tentando um Golden Globes vivendo esse papel de idiota. Na última vez que recebi uma nude não solicitada, por exemplo, decidi agir como metade dos meus ex fariam em situação de treta.

Eu: Uau, muito bonita a sua nude. Manda mais!
Homem: Sabe o que seria bonito também? Você me mandar uma nude sua.
Eu: Poxa, não curto mandar, só curto receber.
Homem: Ah, mas eu adoro receber também!
Eu: Entendo. Sinto muito :/

Fim da discussão. Você pode trocar o seu empenho em mostrar que sabe trocar ideia pela comodidade de não passar nervoso com quem pensa tão diferente que vai te aborrecer (e vice-versa).

O exercício de se fazer de bobo é particularmente bom para quem acha ou tem certeza de que é esperto, como infelizmente é meu caso desde pequena. Tiro das costas o fardo de tentar ser a sabe-tudo e, às vezes, sobra tempo até para gastar com o que realmente me faz feliz: queimar a lomba no sol ouvindo um axé music lírico da safra de 1991.

Parecer sagaz pra caramba nunca fez ninguém ter paz de espírito e tenho provas. Desde que comecei a responder a todas as frases que insultam minha inteligência com um singelo "obrigada pela explicação" seguido de cara de sonsa, evitei cerca de 30 brigas e deixei outros tantos sujeitos sagazes com a mesma pulga atrás da orelha.

O chato nisso tudo é que talvez eu esteja viciada em me fazer de sonsa. O bom é que, especialmente num ano eleitoral feito o nosso, talvez a boa seja mesmo ser bobo.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.