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Luiza Sahd

Misandria? Podemos trocar a raiva do homem hétero por pena do homem hétero

Luiza Sahd

02/09/2020 04h00

 

O que você vê nessa imagem? Se a resposta for "homens gays", precisamos conversar. (Ilustração: Reprodução/ Rob Bailey)

Uma das discussões mais profundas de que tenho memória da minha adolescência foi com a minha mãe. Reiteradas vezes, cobrei algo que me parecia básico em todas as outras mães, até que ela se cansou e lançou a braba. "não posso te oferecer isso. A gente só consegue dar daquilo que tem dentro de si e, infelizmente, não tenho de onde tirar isso em mim."

Carrego essas sábias palavras comigo vida afora — e costumo observar se as pessoas têm o que eu gostaria que tivessem antes mesmo de esperar qualquer coisa delas. O lado ruim disso é que reduzi consideravelmente minhas expectativas em relação a desconhecidos; o lado bom é que a queda de quem não cria falsas expectativas é sempre menor do que a dos sonhadores. Dito isso, faço questão de frisar que os sonhadores se divertem mais na vida, de modo geral.

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Apesar de ter recebido essa lição fabulosa sobre trocas humanas na mais tenra idade, passei décadas enganada sobre os homens por quem tive interesse romântico ou erótico. E foi relatando a uma amiga, recentemente, que sinto mais preguiça do que vontade de flertar com homens héteros que tropecei, de novo, no que minha mãe já tinha ensinado.

Com a amiga, me queixei que não me sinto estimulada mentalmente e muito menos emocionalmente pelos caras com quem converso: em geral, eles evitam intimidade (eu adoro intimidade), não se entretêm com assuntos que passem muito longe de sexo, acham que a excitação ou o orgasmo feminino dá em árvore — sem precisar ser construída — e que o fato de eu estar interessada neles faz o "jogo" perder a graça. Ao que minha amiga respondeu: "você não sente pena dos caras que são assim? Eu sinto."

Senta que lá vem textão

Nem lembro como foi exatamente respondi à pergunta da amiga porque, eventualmente, me deu teto preto de tanta raiva. Mas deve ter sido algo como "pena eu tenho de mim, que me esforço desde sempre para me tornar um ser humano cada vez mais agradável com as pessoas, gasto o que não tenho em terapia, tenho salário menor do que eles e ainda morro de medo se sair na rua depois das 19h. Posso listar mais coisas, você tá com tempo aí? Você tá maluca?" — e o pior é que a amiga não estava maluca. Ela nunca está.

Com muita paciência, a amiga que vamos chamar aqui de Fernanda* me explicou que todas essas coisas que faço por mim mesma (e por quem convive comigo, de modo indireto) me tornam alguém muito mais feliz, emocionalmente habilidosa e equilibrada do que a maioria dos homens cisgênero heterossexuais que conhecemos. Sobre as queixas que fiz deles, ela explicou que a maioria dos caras não têm essas coisas aí que sempre esperei para me dar. Prova disso é que os héteros típicos são desamparados emocionalmente inclusive uns pelos outros — e podemos provar.

Quando uma mulher termina um relacionamento, por exemplo, e se sente profundamente vazia, o que ela faz? Liga para uma pessoa querida — possivelmente uma amiga — e divide o problema. O que essa amiga faz? Chama a pessoa de coração partido para jantar, assistir um filme, dá abraço, oferece um chá de camomila, um chocolate, um áudião de WhatsApp, sei lá. Ela faz alguma coisa. Geralmente, uma porção de coisas. A mulher triste é normalmente amparada por outras mulheres.

Agora vamos pensar no hipotético ex da moça supracitada. Ele termina o namoro e não conta para os amigos, pra começo de conversa, porque ficar choramingando término de relação desvia completamente do padrão de masculinidade que os homens hétero construíram para eles próprios. Na quinta vez em que ele encontrar o amigo mais próximo depois do término, pode ser que escute a pergunta: "E a Carol, tá aonde?" para finalmente responder "então, a gente terminou".

É pouco provável que o ex da Carol ganhe jantar, chá de camomila ou audião do amigo. Nesses casos, a praxe é receber convite para sair e pegar mulher, porque é assim que o hétero orgulhoso de sua orientação sexual é ensinado a fazer com o vazio. Aliás, não existe vazio emocional na cultura hétero porque isso é algo lido como um atributo feminino (Freud, corre aqui!). Pensando por esse viés, comecei a sentir uma pontada de pena deles, sim.

Reconhecer os próprios sentimentos, verbalizá-los e se sentir amparado é uma das coisas mais reconfortantes do mundo, mas muitos homens relatam que só conseguem receber esse tipo de acolhimento… vindo de mulheres. Quando estão longe de suas namoradas, mães, irmãs ou amigas, os homens geralmente perdem, também, a oportunidade de serem tratados com carinho.

Pena, pero no mucho

Os mesmos padrões de masculinidade que impedem os homens de terem contato com experiências agradáveis de afeto foram construídos em um mundo patriarcal, arquitetado, dominado e liderado por homens. Até pouco menos de 100 anos, as mulheres sequer saíam do ambiente doméstico — e não tinham acesso a posições de poder social ou político. Elas eram propriedades de seus pais, depois de seus maridos e, por último, de seus filhos. Não podiam trabalhar, abrir contas em bancos, ter propriedades ou tomar quaisquer decisões sem o aval de um homem responsável. Elas passavam a vida cuidando da família e morriam sem ter gerência alguma sobre o próprio destino . No Brasil, do ponto de vista jurídico, essa situação só começou a ser reparada a partir da década de 1960.

Sobre a construção de masculinidades, algumas obras feitas por e para homens podem ensinar muito mais do que eu a respeito do tema: os documentários "A máscara em que você vive" e "O silêncio dos homens"  e o livro "The Descent of Man" ("A queda do homem", em tradução livre) são bons exemplos de materiais introdutórios do assunto. O mundo beligerante, bruto e violento em que vivemos foi idealizado por homens, indiscutivelmente. E ainda que muitos usem o argumento de que suas mães reproduziram esses ensinamentos machistas na educação de cada um deles, é preciso lembrar que as mulheres estavam — e continuam estando em muitos lugares do mundo, mesmo aqui ao nosso lado — completamente rendidas pelas regras criadas por eles.

Mais do que discutir a culpa pela invenção do machismo, eu gostaria de celebrar aqui as características que são entendidas como atributos femininos na nossa cultura. A capacidade de se emocionar, acolher, de construir intimidade, a possibilidade de interpretar e dividir um imenso espectro de sentimentos com quem quer que seja (sem que isso comprometa nossa reputação) e todas essas coisas que nos tornam, de fato, seres humanos superiores — independentemente do nosso gênero ou orientação sexual.

Deve ser horrível não ter nada disso dentro de si e deve ser muito triste perder a oportunidade de se relacionar com pessoas que tenham isso para dar. Algumas mulheres ainda oferecem todo carinho do mundo sem esperar nada em troca; pessoalmente, estou aprendendo a não esperar nada disso do pessoal do orgulho hétero. Agora que não somos mais propriedade dos homens da família — muitas vezes somos nós as chefes de família, como é o caso de mais de 40% dos lares brasileiros –, resta descobrir o que esperar deles, afinal, se não for esse mínimo de humanidade afetiva, tão cotidiana no mundo feminino e tão menosprezada no imaginário popular.

* A amiga chama Fernanda, mesmo. Te amo, Fernanda. Obrigada por estar por perto e me acolher sempre.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.