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Luiza Sahd

Privilégio x direito básico: por que anônimos são 'cancelados' na internet

Luiza Sahd

12/08/2020 04h00

"O like tem sido nosso alimento dia e noite" – autor desconhecido. (Foto: Reprodução/ Museologia)

Nos últimos dias, a lista dos famosos cancelados na internet foi extensa — como não poderia deixar de ser em 2020, quando estamos batendo sucessivos recordes de tempo conectados à internet. Os últimos contemplados com o esculacho popular nas redes sociais foram Marília Mendonça, por uma fala transfóbica durante sua live; a cantora Anitta, por fazer show na Itália durante a pandemia; o influencer Gabriel Simas, por dizer que sente falta do trajeto do trabalho para casa "para descompressão". E é esse caso o que mais me impressiona. Vamos dar uma olhadinha?

 

Depois de afirmar que o trânsito da cidade oferecia, na experiência dele, uma oportunidade de se desligar "para ouvir música e pensar em outras coisas", Simas virou meme. Muita gente apontou que só quem não se espreme em meios de transporte absolutamente lotados ou precisa enfrentar 4h diárias de deslocamento para trabalhar pode achar esse momento agradável. Todo mundo que apontou isso tem razão, mas fiquei me perguntando se esse seria mesmo um motivo pelo qual Simas precisaria se desculpar, como de fato se desculpou.

 

Direito básico não é privilégio

Marília Mendonça se desculpou por sua fala cheia de ignorância e preconceito contra pessoas trans; Anitta nem deve ter tomado conhecimento do cancelamento da última semana porque 1- Anitta sendo cancelada nas redes já virou pleonasmo e 2- ela parece ocupadíssima na viagem. Já o caso Simas segue me parecendo uma incógnita, porque ter direito a transporte decente do trabalho para casa deveria ser um direito básico — não um privilégio proibitivo para a imensa maioria dos trabalhadores brasileiros.

Quando um influencer fala que gosta do tempo de deslocamento para casa e as pessoas apontam isso como a ostentação de um privilégio — e como se o grande vilão fosse o cara, não o nosso Estado — a gente perde de vista uma porção de discussões relevantes a troco, talvez, de mostrar como somos moralmente superiores a quem não tem sensibilidade em relação aos abismos sociais do Brasil.

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Uma coisa que sempre me incomodou no governo atual é a terceirização do que é papel do Estado para o cidadão. Quer se proteger da pandemia? Vamos reabrir o comércio, mas fique você em casa. A violência urbana te preocupa e não temos segurança pública estruturada? Compre você o seu revólver. E por aí vai.

No fundo, escolher espantalhos na internet para dizer que aquela pessoa é privilegiada e não tem consciência — quando ela só tem algo que todo mundo deveria ter — também é terceirizar um pouco algumas culpas que temos, todos, como sociedade. Além disso, pode ser uma perda danada de tempo, saliva e desodorante, porque a mudança de opinião de uma pessoa que tomou pisão nas redes não muda muito a visão de quem importa (nossos líderes) sobre esses problemas. Para piorar, o cancelamento também tem acontecido com gente anônima.

"A romantização do pai"

No último domingo, Dia dos Pais, alguns posts no Twitter problematizavam "a romantização do pai". Em uma sociedade que (felizmente) já começa a tolerar famílias monoparentais, famílias com duas mães e outras configurações de parentalidade, de fato, a figura do pai não é imprescindível — sempre e quando não estamos falando de um pai que abandonou um filho para outra pessoa se virar com ele.

Daí a dizer que é errado que muitas pessoas amem seus pais e façam homenagens àqueles que são mesmo dignos de amor, o salto é muito grande. E é um salto num vazio retórico. Ainda que haja muita gente no mundo que sofra (legitimamente) no Dia dos Pais, o problema não deveria ser atribuído a quem tem esse "privilégio" da presença paterna. A presença parental, aliás, é mais um direito básico de todos — seja ela representada por um pai, uma mãe ou qualquer outro tutor afetuoso.

Nesse sentido, muita gente anônima tem sido "cancelada" na internet — seja por "romantizar o próprio pai", por comprar um sabonete que custa 4 reais em um país periférico, seja por encontrar prazer em passatempos considerados fúteis ou simplesmente por se permitir falar de algum outro assunto durante essa tragédia sem precedentes que a pandemia representa no Brasil.

Sociedade da validação

Já tenho 35 anos e muitos deles foram vividos intensamente no trabalho com redes sociais, mas, mesmo assim, outro dia uma amiga que nem pisa nesses ambientes tóxicos precisou me lembrar que vivemos em uma "sociedade da validação" — e que as pessoas dedicam tempo demais buscando aceitação alheia. Bom exemplo disso é o fato de que, agora, inclusive pessoas com convicções pessoais e condições sociais muito semelhantes ficam fazendo espécies de duelos públicos para disputar quem é a mais consciente da realidade atual.

É um espetáculo triste por dois motivos: primeiro, porque dificilmente sai algo produtivo nessa modalidade de enfrentamento e com esse tipo de abordagem; segundo, porque quem quer genuinamente mudar seu entorno tem isso como prática diária na vida e não investe tanta energia, diariamente, esculachando os outros atrás de telas.

Até a discussão se a "cultura do cancelamento" existe, de fato, está sendo levantada. Alguns defendem que não existe cancelamento para as pessoas privilegiadas — e que isso só acontece, por exemplo, com grupos sociais historicamente invisibilizados. Não tenho ideia do que é ser uma pessoa invisibilizada por causa de gênero ou de cor, mas sendo uma mulher e lidando com transtorno de pânico desde a adolescência, posso garantir que já recebi ataques massivos na internet algumas vezes e que isso já prejudicou severamente a minha saúde mental.

Ataques de internet — aqueles que acontecem com essa intenção ou as polêmicas que geram ataques por tabela — costumam deixar muita cicatriz emocional para pouco legado e aprendizagem coletiva. Talvez o cancelamento não seja mesmo um bom termo técnico para defini-lo, mas que o fenômeno existe, existe — e todo mundo que já foi contemplado com ataques coletivos de maior ou menor proporção sabe que eles geram muito mais vergonha e ressentimento do que reflexão. Apesar disso, quem quiser continuar acreditando na intimidação coletiva como caminho para construir um entorno melhor, também pode.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.