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Luiza Sahd

Coronavírus: o pessoal desconstruído parecia mais solidário

Luiza Sahd

17/03/2020 04h00

Meme do "vai pa onde": coincidência ou profecia? Não importa. Envie para o seu amigo que continua na balada em meio à pandemia

 

É sempre difícil exigir civilidade da população em um país cujo presidente da República frequenta um protesto antidemocrático e ainda "vai pra galera" tirar selfie em meio à uma pandemia — mesmo depois de ter se reunido com 14 pessoas que testaram positivo para covid-19 nas últimas semanas.

Ainda que não apresente sintomas, pode ser que o presidente tenha sido contaminado desde o último exame. Nesse cenário, ele pode até não se importar em contrair a doença, mas não se importar em transmitir o vírus para a população que deveria proteger é um pouco demais (até para o Jair).

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De textão em textão, vejo amigos queridos, bem-educados e bem-alimentados condenando o negacionismo de Bolsonaro, Trump e seus aliados políticos em temas como aquecimento global, terraplanismo, movimento antivacina e outros delírios de afronta à ciencia. Infelizmente, as atitudes negacionistas dos governos de extrema-direita nem surpreendem mais.

Supresa, mesmo, tem sido ver colegas desconstruídos, privilegiados e pretensamente esclarecidos fazendo algo que negacionistas fariam: continuar frequentando bares, baladas, festas de formatura, viajando "de galera", se aglomerando, de modo geral, como se o que está acontecendo no hemisfério Norte — cidades sitiadas, falência do sistema de saúde, mortes que poderiam ter sido evitadas — jamais pudesse acontecer aqui.

Isolamento voluntário: acredite, você vai sobreviver!

Enquanto cidadãos da China e da Espanha são supervisionados por drones que mandam os desobedientes voltarem para casa quando desrespeitam a quarentena, a gente já consegue supor que, aqui no Brasil, não vai ter essa tecnologia toda (nem para supervisionar os cidadãos e muito menos para tratá-los quando a propagação do vírus atingir seu auge). No fundo, no fundo, o mais provável é que precisemos ser os drones uns dos outros falando o óbvio: ninguém morre por ficar em casa algumas semanas; já de covid-19, tem morrido muita gente, sim.

Embora o argumento da avó devesse ser suficiente para convencer a todos, não é só a sua avó que corre risco diante de uma pandemia. Fora os idosos e as pessoas  imunossuprimidas, todo mundo (até você!) fica com a vida ameaçada caso os leitos de hospitais e respiradores artificiais não sejam suficientes para atender toda a população doente.

Sabe quem também precisa de leito de hospital e ventilação artificial mesmo quando não foi contaminada por covid-19? Gente que sofreu acidentes. Gente que infartou. Gente que teve complicações em outros procedimentos de emergência. Enfim, a gente não quer, num país que trata seus pacientes com tanto descaso, piorar a lotação dos hospitais. A vítima pode ser qualquer um, atravessando uma rua, distraído, em um dia de superlotação nos prontos-socorros.

"Vai pa onde?"

Sabe como você pode evitar superlotação de hospital? Não passando o vírus para frente. No Brasil, aparentemente, isso inclui ter o bom-senso e a sensibilidade que o governo federal ainda não teve: fazer e sugerir isolamento voluntário enquanto as estatísticas de contágio não param de subir.

Para o jovem médio — que vive postando na internet que adoraria cancelar compromissos — nem é tão difícil. A sua hora chegou, amigo cansado! Ficando em casa o máximo possível, a gente faz os vírus circularem o mínimo possível. A isso também chamamos solidariedade.

Até aqui, está bem claro que não podemos contar com o cuidado dos nossos governantes, mas seria show demais se a parcela mais esclarecida da população pudesse fazer o mínimo — quem sabe não fingindo demência, quem sabe pensando coletivamente, quem sabe evitando de virar negacionista — para que o país não sofra mais do que deveria com o combo pandemia + necropolítica.

 

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.