Por que não existe versão feminina dos galãs feios?
Na última semana, falei aqui sobre as vantagens de se apaixonar por um homem feio. Publicar texto de humor sobre homens mal diagramados oferecia dois riscos óbvios: que algumas pessoas não interpretassem como texto de humor e que reagissem, em massa, me chamando de baranga. Não seria a primeira vez; provavelmente, não seria a última.
Para minha grande surpresa, o que mais recebi foi carinho da população por fazer graça com homens feios. Alguns leitores confessaram sentir orgulho de serem mal-apessoados porque "macho de verdade é feio mesmo". Enquanto isso, no Twitter, a mesma galera que discutiu exaustivamente a aparência de Adam Driver estava em busca da versões femininas de "galãs feios" que Driver representa tão bem.
Acompanhando a discussão acima, fica claro como as pessoas têm pudor demais para insinuar que alguma mulher possa ser, simultaneamente, musa e meio feia. Tudo acaba resvalando para a resposta "mas fulana não é feia!". Aconteceu comigo também: quase mordi a própria testa lendo, repetidas vezes, que Phoebe Waller-Bridge (a protagonista de Fleabag) seria uma boa definição de anti-musa.
Para explicar a diferença de pesos entre dizer que um homem é feio e que uma mulher é feia, a gente infelizmente vai precisar falar sério e lembrar que, até pouco tempo atrás, as mulheres não podiam ser muitas coisas além de belas, recatadas e do lar. Até a década de 1960, no Brasil, mulheres precisavam de autorização formal do pai ou do marido para trabalhar. Ou seja: nem tinham como sonhar com outros objetivos além de serem as mais lindas esposas.
Quase todas as avós e mães que conhecemos (e todas as mulheres que vieram antes delas) não tinham autonomia para serem feias-mas-poderosas, feias-mas-divertidas, feias-mas-talentosas e tudo isso que os homens sempre puderam ser. Obviamente, elas nos criaram com estes valores — e na melhor das intenções.
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Nessa discussão, um colega opinou que as mulheres são muito mais complacentes com a feiura masculina do que os homens costumam ser com a feiura feminina. Ele concluiu, com isso, que somos mais generosas. Eu adoraria concordar, mas discordo: fomos todos criados para seguir a divisão clara de como um homem atrativo deve ser (viril/ poderoso) e de como mulher atrativa deve ser (bonita/ carinhosa).
Partindo dessas ideias, é claro que a maioria das mulheres ficam paranóicas com a própria aparência e se contentam com parceiros feios e poderosos em alguma medida. Ser bonita sempre foi a mais importante virtude feminina. A arte clássica, a mitologia, os filmes da Disney e as letras de música do grupo É o Tchan! estão aí para comprovar.
Com exceção da parte sobre o É o Tchan!, tudo isso é uma pena, mas devo admitir que dou gostosas risadas quando dizem maldosamente que "a beleza do homem está na carteira". Em um mundo todo feito por e para homens, os responsáveis pela construção dessa dinâmica foram justamente eles. Se queixar de mulher interesseira é coisa de quem não lembra que os interesses das mulheres foram todos delimitados pelo pátrio poder.
"Não existe mulher feia, você que bebeu pouco"
Outra colaboração masculina para o tabu das musas feias é aquele papo de que homem de verdade está sempre pronto para comer mulher. O ditado "não existe mulher feia, você que bebeu pouco" é a mais perfeita definição do binarismo homem viril/ mulher-objeto. E ele é tão falacioso que a gente sempre ouve o contrário disso quando um homem muito bonito aparece namorando uma mulher que não se encaixe no mesmo padrão. Foi assim com o casal Marília Gabriela e Reynaldo Gianecchini, é assim com Keanu Reeves e Alexandra Grant, vai continuar assim enquanto a gente não desistir de reproduzir certas lógicas que já não se encaixam na realidade.
Com a revelação de que mulheres podem ter novos papéis na família, no mercado de trabalho, na ciência, na mídia ou nas artes — como é o caso de Phoebe Waller-Bridge –, a expectativa é de que as mulheres possam ser, num futuro próximo, atraentes das mais variadas formas. Inclusive de formas que não estejam atreladas à beleza física.
Então, quem sabe, a gente vai finalmente poder contar com a tão esperada categoria "musas feias" para descrever mulheres que não parecem bonecas — mas que daríamos tudo para chamar de mozão. Com um tanto de otimismo, também dá para esperar que homens não precisem se reduzir a grandes comedores ou provedores e passem a ser, quem sabe, melhores companheiros em sentidos mais amplos. Se combinar direitinho, todo mundo consegue ser sexy.
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