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Luiza Sahd

“Apaga que é gatilho”: piada é boa, mas esvaziamento da expressão é péssimo

Luiza Sahd

03/12/2019 04h00

Para esvaziar o aviso de gatilho você vai precisar de duas turmas: uma reclamando de posts que não precisam do aviso de gatilho e outra fazendo piada com quem errou. (Foto: Reprodução/ Fuentes Studio)

 

A última treta da internet não é pequena nem simples. A frase "apaga, isso me dá gatilho" virou um meme bem popular (e tétrico) nas últimas semanas. Tudo começou com este print publicado no Twitter:



O "alerta de gatilho" se popularizou na internet, principalmente, dentro de grupos de apoio que se formaram na rede nos últimos anos. Em fóruns que reúnem vítimas de abuso sexual, por exemplo, é comum ver os dizeres "aviso de gatilho" antes de uma publicação com relato de abuso. O alerta serve para prevenir leitores desavisados de que o teor do material é forte — e poderia fazer quem passou por traumas semelhantes reviver suas sensações de sofrimento.

Assim, o aviso de gatilho é (ou deveria ser) usado como um aceno de empatia e delicadeza para com pessoas fragilizadas que não estão preparadas para revisitar certos traumas.

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No caso da reivindicação para que uma jovem apagasse o áudio carinhoso do próprio pai, o pedido descabido gerou uma torrente de piadas sobre a falta de discernimento na reivindicação do aviso de gatilho.

 

 

Quando a piada saiu do controle, muita gente veio lembrar que aviso de gatilho não deveria ser matéria-prima de meme.

 

 

Já aconteceu com você também?

Faz pouco mais de um mês que desejei ardentemente ter recebido o tal aviso de gatilho antes de clicar em um vídeo que me chegou por WhatsApp. Quando abri aquela desgraça, eu estava dentro de um avião, com as mãos já suadas pelo nervoso de voar, e dei de cara com imagens de uma mulher pisoteando uma criança de forma totalmente sádica, cega de ódio de um ser humaninho cuja estatura não chegava a um metro de altura. No vídeo, a criança gritava cheia de desespero enquanto era pisada e chutada pela adulta — e um homem registrava a violência.

Só quem também apanhou de forma desproporcional e contumaz na infância conhece a dor física e emocional de passar por isso (ou ver imagens que despertam essas lembranças). Após fechar o vídeo com o fiozinho de pressão arterial e lucidez que me restavam, notei que a mídia vinha acompanhada do típico textão de corrente de zap: "Temos que achar e denunciar essa vagabunda desgraçada, é um absurdo etc".

Mais desgraçados do que os autores do vídeo que recebi, só mesmo o bando de adultos barbados que repassaram esse tipo de conteúdo pra frente sem fazer um minuto de reflexão sobre como ajudar, de verdade, a criança abusada. Em lugar de encaminhar vídeos deste tipo para amigos e familiares na internet, podemos fazer o esforço mais sincero e efetivo de mandá-los aos Conselhos Tutelares locais, à Polícias Civil e Militar ou ao Ministério Público. Quando conhecemos o autor do crime, podemos denunciar diretamente ao Disque 100, (nacional) ao Disque 181 (estadual) ou ao Disque 156 (municipal).

Fazer pose de justiceiro repassando mídias desse teor, além de ser um papelão, pode realmente ativar gatilhos emocionais complicados para um monte de gente, como aconteceu comigo e pode acontecer com qualquer pessoa querida.

O que é (e o que não é) gatilho

Para simplificar muito a questão do que deveria ou não deveria ser publicado na internet com aviso de gatilho, podemos nos fazer perguntas simples sobre os conteúdos que pretendemos compartilhar: "Meu post contém imagem ou relato de violência explícita?"; "Isso aqui pode induzir alguém a se machucar?"; "A publicação envolve discursos de ódio e opressão?". Se a resposta para uma dessas perguntas for sim, você pode repensar a utilidade do seu post e, se ele for mesmo benéfico para alguém, basta inserir uma mensagem como "AVISO DE GATILHO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA" no cabeçalho do seu post.

Para muito além desses cuidados básicos, tudo é subjetividade. É claro que o compartilhamento de um áudio do seu pai pode fazer alguém que tenha experimentado o abandono paterno revisitar certos traumas, mas, nesse caso, você está compartilhando um discurso de paz — não de violência. É humanamente impossível prever quais dores a gente pode provocar no outro, mesmo quando temos a melhor das intenções.

Esvaziar o aviso de gatilho não é uma boa ideia

Em conversa com o blog, o escritor e psicólogo Flávio Voight comentou a importância dos avisos de gatilho e lembrou por que a gente não deveria esvaziar essa expressão. "Entrar em contato com experiências traumáticas parecidas com as nossas pode ser catártico porque a gente se identifica com elas. Por outro lado, reviver um trauma antes de superá-lo pode ser bem nocivo para a maioria das pessoas", explica.

No outro extremo, agir como se tudo na internet devesse ser compartilhado com aviso de gatilho é um desserviço para quem realmente poderia se beneficiar desse recurso de empatia. "Quando você começa a promover uma cultura de esquiva de assuntos dolorosos você também está fazendo o inverso do que consideramos saudável em terapia. Idealmente, a pessoa precisa ir se curando para voltar a entrar em contato com o assunto da dor e ressignificar esse assunto até que ele não doa tanto", recomenda Voight. "O bom-senso, nesse caso, é parecido com o que precisamos adotar quando temos uma ferida causada por uma cirurgia, por exemplo: é claro que você não cutuca um corte recém-aberto, mas, idealmente, você dá o tempo para que ele se torne uma cicatriz e volta à vida normal conforme se recupera", conclui.

Em poucas palavras: fazer meme com aviso de gatilho é esvaziar esse recurso tão importante em um espaço tão brutal como a internet. Dizer que tudo é gatilho, também.

"Toda pessoa tem uma ferida — ou seu 'machucado de estimação' — e vai sofrer pelo menos um pouquinho ao ouvir sobre determinados assuntos… Mas isso faz parte da nossa história. Às vezes, negar o gatilho pode ser como negar parte da própria história", resume Voight.

Fazer bom uso do aviso de gatilho exige um equilíbrio delicado. De um lado, quem não passou por determinados traumas precisa aprender a falar com delicadeza sobre qualquer assunto — inclusive porque delicadeza nunca fez mal à ninguém, ao contrário da estupidez. Do outro, quem tem o trauma precisa encontrar maneiras de lidar com ele sem transferir essa responsabilidade para quem de fato não tem nada com isso.

Se combinar direitinho, ninguém sai machucando ou machucado por aí — e a expressão "gatilho", que pode ser útil para proteger pessoas em sofrimento, não precisa ser esvaziada.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.