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Luiza Sahd

Para explicar consentimento a machões, você só precisa de um dedo

Luiza Sahd

23/08/2019 04h00

(iStock)

Em mais ocasiões do que a gente gostaria de testemunhar, o hétero metido a machão mostra que não sabe nada sobre consentimento — ou finge não saber — até que você enfie um dedo no ânus dele. Tente aí na sua casa: pode ser que o consagrado só contemple o assunto com verdadeira atenção nessas circunstâncias. Aconteceu comigo e funciona mesmo, mas preciso contar a história que precede esse desfecho para justificar como, nesse caso, precisei fazer o papelão de ser opressora para sair da condição de oprimida.

Do final da adolescência até mais ou menos os 30 anos de idade, estive convencida de que minha vida sexual era fabulosa. Sempre fui desenrolada para paquerar, tive liberdade suficiente para transar com pessoas de vários perfis e idades, experimentei o sexo com e sem afeto, fui transona na rua, na chuva, na fazenda… mas quase sempre senti dor na hora em que o parceiro me sarrava com mais força para gozar — e sempre acreditei que sentir dor fazia parte do enlace erótico.

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Já falei bastante aqui no blog sobre o triste desconhecimento de homens e mulheres sobre a dor em relações sexuais. Se você não tem um fetiche específico por castigos físicos mas acha normal sentir incômodo em algumas posições sexuais, talvez precise refletir sobre a importância do consentimento para que o seu corpo seja manipulado com o cuidado merecido.

Tenho certeza de que essa cena já aconteceu com várias mulheres além de mim: o cara coloca a moça em uma posição boa para ele (e ruim para ela) na hora da penetração. Em algum momento, a garota avisa que a posição ou a intensidade machuca, mas o parceiro se faz de surdo. Outra modalidade bem comum de sexo miserável por falta de noções de consentimento acontece quando o homem coloca o pênis, o dedo ou qualquer objeto de sua preferência onde não foi convidado a colocar nada. Isso é, infelizmente, o pão de cada dia na vida sexual das mulheres desavisadas. Foi em uma situação dessas que precisei imitar o rapaz com quem estava transando: enfiei o dedo no reto dele "sem querer" — e pude me poupar de dar uma longa explicação, no meio do rala e rola, sobre como é diferente topar fazer sexo de topar tudo o que possa acontecer durante o sexo. 

Muita gente fica chocada ao saber que qualquer ato não consentido durante uma transa consentida pode configurar, sim, abuso sexual. Inclusive perante a lei. Se fôssemos mencionar aqui o tanto de mulheres que são estupradas por namorados e maridos todos os dias ao redor do globo, aí é que esse texto não terminaria nunca.

Consentimento no sexo

Nem todo mundo pensa muito a esse respeito, mas todas as etapas de uma transa precisam passar pelo filtro do consentimento e isso pode acontecer com sutileza e sensualidade. Na maioria dos casos, basta sinalizar fisicamente o seu desejo e perguntar: "posso"? É simples demais na teoria, mas, na prática, muitos homens se sentem menos másculos quando são gentis (ou simplesmente decentes) com as parceiras sexuais. Bom exemplo disso são os abundantes casos de stealthing no Brasil e no mundo.

Lembra do cara que precisou de um dedo para pensar sobre consentimento? Pois foi com ele, também, que senti vontade de esticar a noite na delegacia mais próxima. Como muitos caras têm feito quando não conseguem manter a ereção com preservativo, o rapaz retirou a camisinha durante a transa sem me avisar. Se eu tivesse engravidado ou contraído alguma IST, a gente sabe quem seria culpabilizada, não sabe? Na seção de comentários aqui, também é frequente aparecer uma marmanjada avisando que a culpa é sempre da mulher transona, não do cara que está cometendo um crime já tipificado pelo Código Penal brasileiro.

É muito triste que a gente precise misturar papo de prazer com caso de polícia, mas fica o aviso: estamos amparadas pelo artigo 215 do Código Penal caso o parceiro retire a camisinha sorrateiramente durante uma transa.

Consentimento serve para tudo

É inacreditável que a gente não aprenda mais sobre consentimento desde a primeira infância, porque ele é necessário em toda e qualquer etapa da vida, em qualquer circunstância ou realidade — e em qualquer lugar do mundo.

Contar a uma criança que ela não é obrigada a tocar ou ser tocada por ninguém (quem nunca foi forçado a abraçar um parente chato por educação?) é também contar que aquele corpinho é dela — e que ele não pode ser manipulado sem consentimento por absolutamente nenhuma pessoa, em nenhuma etapa de sua vida. Isso evitaria infinitos casos de abusos experimentados não só infância, mas também na vida adulta e na velhice.

A geração que acha a Lei da Palmada absurda, por exemplo, é a mesma que cresceu tendo o corpo manipulado de forma violenta por familiares e outros tutores. A gente deveria ser entusiasta de todos os recursos legais que garantem a autonomia das pessoas sobre o próprio corpo desde pequenas porque, depois que estamos crescidinhos, fica mais difícil acreditar de verdade que as pessoas não podem nos tocar como bem entendem e que todos os corpos são dignos de respeito e reverência.

Amar o próprio corpo é muito difícil para quem passou por violações de ordens diversas, seja tomando surras dos pais, seja em experiências sexuais abusivas ou simplesmente em assédios cotidianos. Colocar limites para que outras pessoas não nos toquem como não gostamos é especialmente difícil para mulheres, uma vez que fomos criadas com muitas recomendações sobre como agradar nossos parceiros e nenhuma instrução formal sobre como tratar bem o nosso próprio corpo. Isso se estende para tantos contextos da vida feminina que a maioria de nós vive levando o próprio organismo ao limite na luta por aprovação alheia — seja fazendo dietas malucas, seja permanecendo em relações afetivas pouco generosas ou continuando transas que deveriam ser cortadas nos primeiros gestos de desconsideração.

Poucas mulheres foram criadas para ter consciência de que o próprio bem-estar precisa vir antes da satisfação alheia e, nesse sentido, o homem médio não tem ajudado muito. O que um bando de gente pode chamar de misandria, poderíamos chamar apenas de exaustão motivada pelo desrespeito contínuo ao consentimento.

Aos que vão advertir que "nem todo homem (…)", deixo aqui meus parabéns e a lembrança de que vocês não estão fazendo nada além da obrigação de qualquer sujeito decente. As noções de consentimento são boas para todo mundo, exceto para os abusadores. Uma sociedade que não sabe respeitar o consentimento das pessoas sobre o próprio corpo não sabe nada.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.