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Luiza Sahd

Por que apresentador do Jornal da Noite duvida das vítimas de João de Deus?

Luiza Sahd

19/12/2018 04h00

Na noite da última segunda-feira (18), o jornalista Fábio Pannunzio, âncora do Jornal da Noite na TV Band, insinuou que parte das 500 mulheres relataram abusos cometidos por João de Deus ao Ministério Público de Goiás poderiam estar mentindo. O motivo do suposto complô feminino seria "uma grande campanha contrária a esse tipo de religião".

Aqui, a fala de Pannunzio:

Durante sua pensata, o apresentador pergunta ao telespectador se é crível que João de Deus, aos 76 anos de idade, tenha molestado 500 mulheres. Por aqui, nos perguntamos se é crível que um jornalista com tamanho prestígio não tenha se informado minimamente sobre o caso antes de comentá-lo na televisão.

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Para começo de conversa, também sou de humanas — e peço perdão se errei na conta de padaria que fiz aqui — mas vamos lá: a primeira denúncia deste tipo contra o médium aconteceu em 1980, há 38 anos. De lá para cá, se passaram 456 meses sem que João de Deus tenha sido julgado por abusos sexuais, o que permitiria que ele atacasse um pouco mais de uma vítima por mês.

Não sei o Pannunzio, mas particularmente acho não só possível como provável que um homem que já foi acusado de abuso inclusive pela própria filha e pelos netos cometa um crime ao mês. Ou trinta. Não existe um teto conhecido para isso, especialmente quando toda uma cidade depende economicamente da atividade dele: agora, começam a circular notícias de que boa parte dos moradores de Abadiânia sabia dos crimes, mas não podia ou temia falar sobre o caso. Não custa lembrar, também, que testemunhas que acusaram o médium sofreram ameaças envolvendo a vida delas e de seus familiares. Algumas foram retiradas do país por medida de segurança. 

A primeira resposta para a pergunta "por que o Pannunzio duvida das vítimas?" é: porque todo mundo se sente muito à vontade para duvidar. O que essas pessoas ignoram é que crimes sexuais são cometidos sempre em locais privados e contam com o medo, a vergonha e a dúvida das vítimas sobre a própria lucidez. A dificuldade de prová-los é imensa porque as vítimas e locais de crime são escolhidos cuidadosamente.

Em todos os sentidos, temos sido coniventes com abusos quando somos muito mais generosos com os suspeitos do que com quem se diz vítima de violações. A presunção de inocência é mesmo importante em qualquer caso de infração penal, mas presumir a inocência de um sujeito milionário e poderoso quando há 500 pessoas contando episódios dolorosos de violações… isso aí é apreço demais pelo acusado ou desprezo demais pelas vítimas. Provavelmente, ambos.

Aqui e ali, começam a pipocar insinuações para desqualificar as mulheres que contam ter sido abusadas pelo médium. A própria equipe de defesa de João de Deus tem apontado Zahira Leeneke Maus (a bailarina holandesa que fez uma denúncia no programa Conversa com Bial) como "uma mulher com passado não-recomendável". Eles dizem que Maus era prostituta. Ainda que fosse verdade, o que isso quer dizer? Que uma prostituta mente? Que ela pode ser tocada sem consentimento? O que é uma mulher com um passado recomendável e por que precisamos de atestados sobre nosso passado para falar sobre violações? São muitas perguntas, desculpe.

Sobre a acusação da própria filha, que relata ter sofrido uma série de estupros entre os dez e os 14 anos de idade (há 39 anos, para falar ainda da matemática), o advogado do médium insinua que ela já esteve internada e que é louca. O que ele não comentou é se alguém violada por quatro anos durante a infância tem alguma chance de manter uma saúde mental 100% sem ajuda médica.

Enquanto acusamos mulheres de serem loucas e oportunistas quando elas relatam abusos, outras mulheres aprendem a se calar. A lógica é bem simples. Quando elas se calam, outras caem na mesma armadilha por desconhecimento dos riscos. Muito provavelmente, mais de 500 mulheres poderiam ter sido poupadas se a primeira a acusar tivesse sido levada a sério. Para elas, gostaria de dizer aqui: acredito em cada uma de vocês.

Sobre o que pretende um jornalista como Fábio Pannunzio, acusando frequentadoras da casa Casa de Dom Inácio de Loyola de conspirar contra a própria religião, a gente não pode dizer (também sob risco de sermos chamadas de loucas). Mas no coração de cada mulher que sofreu sucessivos abusos — ao longo dos meus 33 anos, foram quatro — sabemos direitinho o que é. E não vamos mais colaborar com gente como ele.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.