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Luiza Sahd

Manual de sobrevivência: até 2019, é proibido entrar em pânico

Luiza Sahd

05/11/2018 04h00

 

Com um pouquinho de coragem, até a sua pele fica mais bonita

O brasileiro adora procrastinar todo tipo de compromisso. A gente é tão especialista em se atrasar que mesmo o Réveillon não passa de um protocolo que seguimos porque o mundo inteiro segue; fazemos contagem regressiva e pulamos ondinhas sabendo que, na verdade, nosso ano só começa depois do Carnaval.  

Ao invés de lançar mão dessa habilidade exclusivíssima, desde o último domingo, muita gente resolveu ser proativa em sentir medo.

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Com razão, alguns manuais de sobrevivência a regimes autoritários vêm circulando na internet. Por um lado, as informações dos manuais podem ajudar de verdade a preservar pessoas em situação de vulnerabilidade — como as que foram atacadas nas últimas semanas. Por outro, entrar em pânico antes de situações extremas pode ser o pior jeito de começar uma luta. Dizia o técnico Wanderley Luxemburgo que "o medo de perder tira a vontade de ganhar". Não só concordo como arrisco dizer que o recuo de sujeitos pacíficos é o que abre caminho para o avanço dos violentos.

Nos últimos dias, vi amigos seguindo o protocolo sugerido pelos manuais: eles deletaram ou fecharam suas redes sociais apenas para seguidores desde já. O objetivo seria evitar a perseguição por parte de racistas, homofóbicos ou gente descompensada (e criminosa!) que andou se entusiasmando com o resultado das eleições. Uns dizem que deletar qualquer rastro de oposição ao futuro governo das redes pode ser mais prudente e seguro. Eu digo que todo governo democrático tem que lidar com opositores. Fora isso, apagar opiniões por medo de ataques é dar razão para as pessoas que, elas sim, deveriam estar escondidas. Até onde ficamos sabendo, racismo e homofobia são delitos de intolerância passíveis de multa e reclusão. Se o presidente eleito respeitar a nossa Constituição conforme prometido, certo mesmo é a gente denunciar os crimes — e não se enfiar em abrigos antiaéreos com medo de que aconteçam.

Para as pessoas em situação de ameaça concreta, faz todo o sentido do mundo se proteger de qualquer exposição que possa trazer risco adicional. Para aquelas que não devem nada à lei, que tal continuar agindo como o que somos mesmo? Se somos cidadãos comuns e temos liberdade de expressão, idealmente, devemos usá-la. Inclusive, parece que ela corre sérios riscos por falta de uso.

Em meio a tantas iniciativas violentas que infelizmente vêm ganhando força, é normal sentir medo. O que não é normal é abrir mão de direitos básicos antes mesmo de sermos obrigados a fazê-lo. O político que promete reprimir minorias e se diz simpático à ditadura nem assumiu o cargo ainda. Se você não torce por uma ditadura, o melhor a fazer é não facilitá-la.

Pelo bem da nossa liberdade: até 2019, é proibido entrar em pânico. De 2019 em diante, também.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.