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Luiza Sahd

Antes do debate nas escolas, adultos deveriam aprender sobre gênero

Luiza Sahd

28/09/2018 04h00

(Foto: iStock)A razão pela qual o debate sobre o ensino de sexualidade nas escolas ainda inflama muita gente deve ser essa: ninguém que se identifique como homem ou mulher desde o nascimento faz ideia do que está dizendo quando o assunto é gênero.

Prova disso é a confusão que uma nova lei da Alemanha pode provocar na cabeça de quem leu só o título: por lá, bebês e adultos poderão ser registrados como "outros" no campo onde entraria o gênero "masculino" ou "feminino" do documento pessoal.

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Em Nova Iorque, a mesma lei entrou em vigor esse ano e, a princípio, pretende dar o direito de pessoas intersexuais (que nasceram com características sexuais ou biológicas não totalmente femininas ou masculinas) a simplesmente não precisarem mais assinalar uma das duas opções e serem o que elas são realmente: algo entre as duas coisas.

Enquanto ainda estamos brigando pela possibilidade de aprender sobre o assunto na fase escolar, cidadãos não-binários alemães e nova-iorquinos ainda pedem que a lei contemple não só os casos de intersexualidade biológica, mas também a comportamental. Trocando em miúdos: pessoas estão pleiteando o reconhecimento legal daquilo que elas já são — com ou sem a bênção do cartório e de quem "é contra ideologia de gênero".

A discussão em torno de um direito tão básico e justo nem deveria ser discussão. Acontece que não aprendemos nada sobre gênero na hora certa (a fase de aquisição de noções de sexualidade) para, depois, ficar com cara de susto quando lidamos com algo além da nossa compreensão. Atire a primeira pedra aquele que nunca observou alguém difícil de identificar como menino ou menina e não se sentiu intrigado a respeito.

Essas pessoas — que não necessariamente são intersexuais, mas não-binárias — estão por toda parte e o desconforto que podem provocar no outro é um sinal de que o pensamento binário vem limitando as nossas conclusões de forma muito mais ampla do que pode parecer.

Para otimizar o uso do cérebro, fazemos escolhas continuamente com base em antônimos como "bom ou mau", "frio ou quente", "dia ou noite" e acabamos esquecendo que existe "morno" ou "tarde" entre as categorias usadas para facilitar decisões rápidas. Nada mais natural do que a existência de gradações de gênero nos seres vivos (sim, também acontece no mundo animal).

O medo e o desconhecimento em torno do assunto é tão grande que, para além dos casos de violência e exclusão, mesmo os simpatizantes de pessoas não-binárias acabam se enrolando com assunto: inúmeros ginecologistas têm dificuldades para atender homens trans porque não estão preparados para atender esses pacientes. Outro dia mesmo, uma leitora transexual precisou me explicar porque este texto do blog era não-inclusivo: muitos homens menstruam e podem engravidar. Morri de vergonha de não ter levado isso em conta quando toquei no assunto, mas desconfio que aconteceu pelo mesmo motivo que estamos todos nos engalfinhando por algo tão básico. A questão de gênero só parece difícil porque, todos os dias, escolhemos deixá-la de lado.

Há poucas coisas em que os seres humanos não conseguem imprimir perversão, mas a sexualidade é dos campos mais usados para isso. A existência de pessoas diferentes de "homem" ou "mulher", por si só, não muda a vida de quem é um dos dois. Por que, então, pessoas não-binárias incomodam tanta gente?

Deve ser alguma mistura de frustração por não entender combinada com a preguiça de buscar conhecimento. Em 1983, o Pepeu Gomes já tava ligado no papo de não-binaridade, mas alguém deu a atenção merecida? Não deu.

Enquanto a questão de gênero não for um assunto tranquilo para a sociedade como um todo, mesmo quem acredita que não tem nada com isso vai se aborrecer — seja por ver gente querida sendo hostilizada, seja hostilizando a partir da ignorância ou simplesmente por sentir que não está dando conta de ser tudo o que se espera de um homem ou de uma mulher.

Ter uma resposta definitiva sobre o que é ser homem ou ser mulher, inclusive, é só o primeiro dos muitos erros que temos cometido por preguiça. Como podemos debater o bom senso no ensino de algo que ignoramos?

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.