Topo

Luiza Sahd

A gente deveria passar mais tempo pelado

Luiza Sahd

03/10/2017 08h00

Olha lá a Vênus do Cabanel bem tranquila no Musée d'Orsay. Claramente os anjos não foram traumatizados. (foto: Reprodução)

 

Aquela piadinha do "estou nu debaixo desta roupa" é, além de besta, maravilhosa por ser tão didática. Parando para pensar, estamos sempre nus de alguma forma e lidamos muito mal com o estar na própria pele, talvez por usar tanta roupa o tempo todo.

Quem já morou no litoral além de alguma metrópole como São Paulo pode atestar, por comparação, como a relação das pessoas com a nudez muda de acordo com o ambiente. Cresci em duas cidades praianas e fui acostumada a conviver com as pessoas próximas usando quase nenhum pano para cobrir o corpo. Na escola, havia piscina; aos finais de semana, íamos todos à praia juntos, e era comum ver a professora, o semi-conhecido ou o açougueiro de sunga, de biquíni. Mesmo circulando pela cidade, o máximo que a gente usava para sair era um short e uma regadinha. Corpos eram só corpos, e talvez por isso mesmo tenha sido mais fácil para esse pessoal entender que o significado de um corpo dependia da ação da alma que estava ali dentro.

Passados os anos de praia, voltei a São Paulo e, como toda mulher, sofria com a tradição de, lá por novembro, comer o pão que o diabo amassou tentando circular pela cidade usando um dresscode condizente com os termômetros. Junto com o calor desta época, voltava também o assédio de rua mais pesado. A sensação era a de que cada grama de roupa a menos no corpo equivalia a um vale-desaforo para levar para casa, e a gente nem ganhava uma pizza grátis juntando 10 tickets de ofensa chula.

Os homens passam os meses frios sem ver tanta pele à mostra e, quando entra o verão, viram lobisomens. Será porque a nudez quase sempre é exibida ao grande público como um item de consumo sexual? Me parece que sim. Encontrar uma imagem para ilustrar esse texto usando "nu" como palavra-chave já foi um desafio: 90% dos resultados são mulheres gostosas fazendo carinha de quem tá gostando demais. Sinal de que faz falta ver corpos pelados fazendo outras coisas além de sacanagem, mas quando isso acontece, todo mundo entra em choque. E isso deve significar que estamos, nós mesmos, pervertendo nossas carcaças.

A polêmica da criança interagindo com o performer de "La Bête" no MAM só escancara essa relação insalubre com a nudez. Meter um filtro de pedofilia na cena de um corpo inofensivo sendo tocado de forma não-erótica por uma criança acompanhada de adulto responsável é caso de hospício. Pior: de internação coletiva.

Associar um corpo sem roupa a erotismo de modo automático só pode ser fruto de confusão, burrice ou doença, porque sexo é apenas uma das milhares de coisas que um corpo nu pode fazer. Um corpo nu pode estar tomando banho enquanto chora, pode estar parindo uma criança, pode estar passando por uma cirurgia do coração, pode estar morto em um necrotério, pode estar adormecido embaixo de um ventilador durante um dia insuportavelmente quente, pode até estar fazendo cocô (tem gente que só faz sem roupa, que trabalheira!)… ou apenas existindo, sem afrontar ninguém.

Quando visitei uma praia nudista, me senti mal pelo fato de me sentir mal e, logo em seguida, notei que as crianças estavam muito menos incômodas do que os adultos em meio àquela legião de tetas e sacos balançando ao sabor das ondas. Procurei fazer o mesmo e acabei aproveitando melhor a experiência da praia em si.

Na última semana, quis ter crescido frequentando praia nudista e performance de nu em museu. Queria que todos nós tivéssemos. Talvez assim a gente tivesse clareza, quando adultos, de que pedofilia é uma crueldade movida por intenção. Já um corpo nu desprovido de intenções cruéis deveria ser uma beleza, uma dádiva ou uma festa.

 

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.