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Baixaria? Gugu promoveu, sem querer, democracia sexual no Brasil

Luiza Sahd

26/11/2019 04h00

Foto:Divulgação/Record TV

Há 16 anos, Gugu Liberato atravessava a pior crise de sua carreira. Após veicular uma entrevista com falsos integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) em seu programa, o apresentador viu seu prestígio ir para as cucuias num imenso escândalo midiático — e com toda a razão.

Nessa época, eu estava prestando vestibular e lembro que a farsa do PCC virou até tema de redação no processo seletivo da Fundação Cásper Líbero (que foi, ironicamente, a faculdade em que Gugu se graduou como jornalista). Na ocasião, precisei escrever uma análise sobre como a ambição cega por audiência influenciava a qualidade e a credibilidade dos programas de televisão brasileiros.

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Minha memória de peixe dourado já não oferece a menor pista do que escrevi naquela folha em branco, mas desconfio que a reprovação no processo seletivo da Cásper tenha alguma relação com a simpatia que sempre senti por Gugu aliada à minha completa falta de familiaridade com o noticiário político durante a adolescência. Jovem: se você estiver prestando vestibular, priorize o noticiário político em detrimento de gincanas de pesca de sabonetes com nudismo na TV.

Voltando à problemática do escrúpulo na luta por audiência, Gugu foi mesmo audacioso nesse sentido. Para além da entrevista sensacionalista com falsos criminosos, o apresentador testou sem medo os limites do que era aceitável exibir em um programa vespertino de domingo que, supostamente, era feito para toda a família. Foi no Domingo Legal do SBT que muitas crianças e pré-adolescentes como eu acompanharam, vidrados, a ascensão e a queda dos grupos de axé music, aprendendo coreografias sensuais e letras com duplo sentido que, de fato, acabavam sendo palatáveis para todos os membros da família — do caçula ao vovô.

Foi também nesse programa que vimos o Jean-Claude Van Damme em pessoa ostentando uma ereção inconveniente, ao vivo, depois de dançar com a Gretchen. A reação do Gugu? Apontar o pinto de Van Damme e cair na gargalhada. O que muitos chamariam de baixaria, Gugu diria que é parte da vida.

Antes que alguém reclame que Gugu objetificava demais as mulheres, permita-me lembrar que ele também botava muitos dos nossos ídolos seminus para catar sabonetes na banheira e recrutava uns modelos masculinos bem sarados para fazer strip-tease testando os nervos dos famosos mais inusitados, como vemos aqui:

 

O curioso nisso tudo é que o Gugu em si era absolutamente recatado e só tirava o terno ou desarrumava o cabelinho impecável para fazer presepada se fantasiando em quadros como o lendário "Táxi do Gugu". O próprio Silvio Santos já ressaltou em entrevista que um dos motivos para confiar tanto no pupilo era a criação rígida que Gugu recebeu em uma família tradicional.

Esse é, provavelmente, um ponto chave para entender a diferença entre Gugu e tantos outros apresentadores que exibem conteúdos apelativos do ponto de vista erótico em seus programas: Gugu nunca se comportou como um predador sexual no palco ou constrangeu algum convidado diante das câmeras em tom lascivo ou moralizante. Silvio Santos, geralmente, oscila entre parecer um senhor tarado e dar lição de moral em convidados que parecem sexy demais para o gosto dele. O dono do SBT teria muito o que aprender com Gugu nesse sentido — e vários apresentadores que lutam pela audiência exibindo corpos seminus, também. É muito raro ver apresentadores que não demonstrem nem uma pontinha de ódio, desprezo ou superioridade diante de celebridades muito sensuais.

Não sabendo que era impossível nos anos 1990 — e provavelmente por causa dessa combinação tão peculiar de recato e ambição pela audiência –, Gugu foi lá e fez: ele conseguiu naturalizar o erotismo como parte das nossas vidas na televisão aberta. Em um país que exibe tetas e bundas como pedaços aleatórios de carne no Carnaval para, depois, repreender os mesmos corpos e capitais eróticos ao longo do ano, não é pouca coisa. Quando Gugu entrevistava artistas e modelos com pouca roupa, ele conseguia tratar essas pessoas com a dignidade e o respeito que todo corpo desejante mereceria, mas não recebe na TV brasileira ou fora dela.

De pequena, lembro que muitos familiares, com a melhor das intenções, me davam bronca e mudavam de canal quando me pegavam assistindo "baixarias" no Domingo Legal, mas poucos desses familiares foram tão competentes quanto o apresentador em me ensinar que a sacanagem e o erotismo são partes boas da vida — e que nossa sexualidade não deveria em hipótese alguma representar algo feio, sujo ou repulsivo.

Na última semana, um texto comparando as condolências prestadas pelo falecimento de Gugu e pelo falecimento do rabino Henry Sobel viralizou na internet. O autor da coluna se referiu às atrações que Gugu exibia no Domingo Legal como "lixo", "pornô soft" e "um vale-tudo ordinário". O mesmíssimo autor do texto foi demitido de uma grande editora brasileira por assediar uma subordinada. Eu sei dos detalhes porque trabalhava lá nessa editora na época (e o relato de assédio que ouvimos foi mesmo aterrador).

É impressionante como a liberdade sexual sempre incomoda justamente os predadores sexuais — aqueles que odeiam ver mulheres rebolando a bunda na TV por puro livre-arbítrio, não por coerção. Uma das musas da Banheira do Gugu, Luiza Ambiel, também declarou há uns tempos que foi vítima de abuso sexual. Na atração em que ela agarrava homens gostosos de biquíni para ganhar dinheiro? Não. Na infância. E o algoz de Ambiel foi um homem próximo à família, não os caras que ela escolheu agarrar deliberadamente com pouca roupa.

Reclamar do conteúdo erótico que Gugu exibia sem analisar friamente a forma como o erotismo dessa geração vem sendo tratado na esfera pública (com ministra dizendo que menina veste rosa e menino veste azul, com um presidente "terrivelmente evangélico" declarando que prefere ter filho morto a ter filho LGBT, entre outros dizeres altamente repressivos) é de uma hipocrisia e de uma nocividade sem precedentes. Particularmente, prefiro ver um filho meu assistindo a Banheira do Gugu do que ouvindo que ele não pode ter uma sexualidade livre, saudável e divertida.

Com erros e com virtudes, por querer ou sem querer, Gugu foi um facilitador da democracia sexual brasileira — que agora, infelizmente, retrocede para o moralismo vazio na velocidade da luz.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.