‘Mulatas exóticas’: assim são chamadas bailarinas brasileiras em Madri
Luiza Sahd
17/07/2019 04h00
O que há de exótico numa pessoa normal? (iStock)
O verão em Madri é marcado por uma agenda intensa de festas e festivais. Nos meses de junho, julho e agosto, tradicionalmente, os muros e postes da capital espanhola são forrados por cartazes do tipo lambe-lambe com propagandas de baladas e shows para todos os gostos.
Nas últimas semanas, quem caminhou pelos pontos mais turísticos da cidade deve ter visto este cartaz, bem chamativo, divulgando uma festa brasileira na Sala Caracol, uma das mais importantes casas de espetáculos da capital europeia:
O cartaz, que ao longo de todo o mês de junho foi se multiplicando por zonas muito movimentadas da cidade — como La Latina, Lavapiés, Puerta del Sol, Gran Vía ou Malasaña — trazia uma descrição intrigante das bailarinas brasileiras que se apresentariam no evento: "mulatas exóticas".
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As fotos do lambe-lambe se tornaram uma espécie de viral em grupos de Whatsapp com membros brasileiros vivendo na Espanha. Elas chegaram aos montes nas minhas notificações, sempre acompanhadas de mensagens indignadas com o tratamento dedicado às mulheres que se apresentariam na Gran Fiesta de Brasil.
Diante do bombardeio diário de imagens do cartaz infame — tanto nas caminhadas pela cidade quanto nas mensagens de celular –, passei a mão no telefone e contactei a assessoria de imprensa da Sala Caracol para saber mais sobre a escolha de um termo racista para a divulgação do evento.
O posicionamento da casa de espetáculos
Em contato com Helena, assessora que preferiu não divulgar seu sobrenome "por ser só uma trabalhadora", perguntei o que havia de exótico nas bailarinas que se apresentariam sábado, 6 de julho, na Caracol. "Elas têm braços no lugar do nariz ou algo do tipo? É por isso que são exóticas?", brinquei.
Helena disse que, pessoalmente, achava o termo ofensivo, mas que a Sala Caracol nem sabia da existência do cartaz. "Ele foi feito pelo organizador do evento, nós alugamos o espaço e nem vimos esse cartaz", garantiu. Quando perguntei por que, então, o banner com "mulatas exóticas" também estava sendo divulgado em todas as redes sociais e no site da Sala Caracol, ouvi um muxoxo irritado do outro lado da linha, seguido por um "te ligo daqui a pouco explicando".
Ao cabo de meia hora, os posts da Caracol divulgando a Gran Fiesta de Brasil haviam sido apagados e Helena telefonou avisando que o evento seria cancelado, mas que a casa de não comentaria o episódio "porque a Caracol já teve problemas antes com questões de racismo. Não fica bem para a imagem da marca".
Questionada se as bailarinas deixariam de receber o cachê por conta do cancelamento da apresentação, Helena respondeu que estava proibida de seguir conversando com Universa. Ainda tentei argumentar que a Caracol é conhecida por visibilizar artistas de fora do circuito europeu em Madri (e que uma conversa com as bailarinas poderia ser produtiva caso a escolha do termo "mulatas exóticas" fosse uma opção das próprias artistas), mas Helena foi irredutível. A Sala Caracol não respondeu se as bailarinas receberiam o cachê combinado e se recusou a passar o contato das moças.
O que diz o organizador
Seydina Ndiaye é um artista senegalês que produz festas africanas em Madri. De acordo com a Sala Caracol, o músico — que protesta contra ditaduras da África em algumas faixas do seu último álbum — é o responsável pela festa e pela criação do lambe-lambe onipresente na capital da Espanha. Em sua Fanpage do Facebook, pude ver que ele estava divulgando a Gran Fiesta de Brasil com fotos de celebridades como Viviane Araújo e Ellen Roche sambando na Sapucaí.
Conversei com Seydina por e-mail para saber mais sobre a escolha de "mulatas exóticas" como atração da festa brasileira. O produtor explicou que é negro, não é racista e apelou para minha "grandeza humana" para esquecer o assunto de vez. Em sua resposta, Seydina afirmou que também teria sido proibido pela Sala Caracol de responder sobre o pagamento de cachê aos artistas escalados para a apresentação cancelada.
Festa "cancelada"
Minutos depois de trocar e-mails com o músico e produtor do evento, telefonei para o contato divulgado no cartaz como se fosse uma cliente interessada em comprar ingressos para a Gran Fiesta de Brasil. Quem me atendeu foi o próprio Seydina, que continuava vendendo convites para o show.
Quando me identifiquei, ele reiterou que não passaria o contato das bailarinas e desligou o telefone antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
Nos dias que se seguiram até o sábado da Gran Fiesta de Brasil, busquei o contato das bailarinas com artistas, donos de bares e organizadores de festas brasileiras em Madri. Todos se mostraram intrigados por não conseguirem o contato das moças que se apresentariam na Sala Caracol — e o incômodo com tom racista dos cartazes era unânime na comunidade de imigrantes brasileiros, mas não só.
Carmelle Massama, 27, é uma estudante de direito internacional que vive na Espanha há um ano. Nascida no Congo, ela também se sentiu ofendida com os cartazes espalhados por todos os cantos cidade. "O racismo é uma ferida aberta para todos nós que somos negros. Quando ele é institucionalizado assim e combinado com essa objetificação ou animalização da mulher negra, como se fosse algo trivial, o insulto se torna muito maior e mais difícil de combater", conclui.
Sobre o uso da palavra "mulata", cuja etimologia ainda é controversa — pode ter vindo de "mula" ou de "muwallad" (mualad, mulad), mestiço do árabe com o 'não árabe', Massama é categórica: "a palavra ainda dói, ainda nos incomoda. Não importa se ofende poucas ou muitas pessoas. Por que a gente precisa se referir a alguém usando o tom de pele como vocativo? Por acaso existe a necessidade de eu te chamar de 'branca' ao invés de Luiza?", indaga.
O que diz a lei espanhola?
A sergipana Maria Dantas, primeira deputada brasileira eleita no Parlamento Espanhol, é advogada e ativista pelos direitos dos imigrantes na Espanha há 25 anos. Em conversa com o blog, Dantas contou que esteve em Madrid e viu o cartaz na Gran Vía, a maior avenida comercial da cidade. Ela lamentou o posicionamento da Sala Caracol no caso e explicou que a Constituição Espanhola ainda não conta com nenhuma lei integral contra o racismo.
"O que se pode fazer em casos como este é uma denúncia por discriminação. Se alguma pessoa ou grupo se sentir ofendida com os cartazes, a medida cabível é apresentar uma queixa com o máximo de provas possíveis do delito na delegacia mais próxima", explica.
Ao que tudo indica, ninguém se incomodou com situações assim nos últimos anos a ponto de formalizar alguma denúncia. O uso de "mulatas" e "mulatas exóticas" não é exatamente uma novidade em Madri: as badaladíssimas Sala Clamores e Sala Taboo já fizeram eventos propagando os mesmos termos para se referir a bailarinas brasileiras.
Que fim levou a festa?
No sábado previsto para a Gran Fiesta de Brasil, os convidados que chegavam à Sala Caracol eram informados de que a festa havia sido cancelada "devido a uma restrição da Prefeitura de Madri".
Aqueles que pediam maiores informações sobre as razões do embargo eram logo cortados e encaminhados ao guichê onde poderiam reclamar o ressarcimento do valor pago para entrar na balada.
As bailarinas brasileiras nunca foram localizadas e a Sala Caracol não fez nenhum tipo de nota de esclarecimento sobre o episódio. Na verdade, ela segue funcionando a todo vapor, quase diariamente e quase sempre lotada, reafirmando o compromisso com artistas e aficionados pela música periférica em Madri.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.