Guarde a tocha: quem torce por justiça no caso Neymar deveria ficar quieto
Luiza Sahd
04/06/2019 04h00
(Foto: Lucas Figueiredo/CBF)
O final de semana foi marcado por uma discussão pública intensa sobre a acusação de estupro que veio à tona na última sexta-feira (31), contra Neymar. No sábado (1º), o jogador publicou um vídeo em seu Instagram expondo as conversas íntimas que teria mantido com a denunciante, via WhatsApp, antes e depois de encontrá-la em um quarto de hotel em Paris.
Além da conversa, o vídeo — que foi excluído ontem por violar os termos e condições do Instagram — mostrava imagens da denunciante nua. O rosto dela foi preservado pela edição, mas o nome da foi divulgado abertamente no programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena (que, coincidência ou não, responde processo por assédio sexual). Ou seja: a vida da moça está sendo devassada pela opinião pública.
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Você pode estar se perguntando se Neymar está acima da lei por não ter sido punido na divulgação de conteúdo sexual envolvendo a denunciante. Para a promotora de justiça Silvia Chakian, que coordena o Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público do Estado de São Paulo, até essa conclusão pode ter desfechos variados quando a hipótese de estupro for comprovada ou refutada.
"É precipitado dizer que Neymar praticou o crime previsto no artigo 218-C do Código Penal ao divulgar as conversas de WhatsApp porque ele tem direito ao exercício da defesa dele, assim como ela — e essa troca de mensagens precisa ser analisada pela justiça. É impossível enquadrá-lo em algum crime enquanto as evidências ainda são objeto de investigação", explica.
Há quem diga que Neymar está sendo muito mais exposto do que a denunciante por ser uma figura pública e há quem lembre que a modelo exposta na internet não tem as mesmas oportunidades que Neymar de defender a própria honra após ter nudes vazados. Sobre isso, Chakian também pondera: "Por um lado, Neymar está sofrendo uma acusação de crime hediondo, com muito estigma. Por outro, é inaceitável que uma mulher seja rotulada publicamente com base em seu comportamento sexual. Um crime gravíssimo foi noticiado e ele merece uma investigação exemplar, porque duas vidas e duas reputações estão em jogo", completa.
Durante nossa conversa, a promotora ressaltou que outras responsabilidades sobre a divulgação de imagem e identidade da vítima também estão sendo investigadas pelos órgãos competentes. O veredicto sobre o crime de estupro pode mudar a forma como a justiça vai encarar a iniciativa do jogador ao divulgar uma troca de mensagens desse tipo.
Tá, mas o que a gente tem com isso?
Tudo e nada. Ao mesmo tempo em que a repercussão do caso gera diálogos fundamentais para o avanço do debate sobre violência de gênero, é impossível negar que o "tribunal da internet" pesou na decisão do jogador quando ele optou por expor a intimidade da denunciante. Além da própria reputação, é sabido que Neymar tem contratos publicitários milionários a perder caso seja condenado por alguma das acusações — e isso deixa o caso ainda mais tétrico para quem se irrita com o poder que o dinheiro tem de conduzir as pessoas a decisões equivocadas ou criminosas.
Expor a intimidade de alguém que te acusa de abuso sexual não é uma boa ideia em nenhum caso, mas principalmente quando se é inocente. Fica parecendo que não é. O gesto de Neymar ao publicar o vídeo foi revoltante mesmo, e é natural que as pessoas queiram respostas legais sobre isso. Por outro lado, o debate leviano sobre casos sérios também foi o que nos fez testemunhar essa conduta lamentável do jogador.
É difícil confiar na justiça brasileira e esse talvez seja um dos motivos pelos quais nos sentimos imbuídos da missão de fazê-la com nossos próprios teclados. Esse raciocínio, aliás, é bem sintomático durante um governo que pretende legalizar armas para que o cidadão "não precise" de segurança pública para se sentir seguro.
Quanto à culpa ou inocência de Neymar, tanto as pessoas que acreditam que o jogador cometeu um estupro quanto as que acham que ele foi vítima de uma acusação falsa estão, agora, no mesmo barco. A quem acompanha o caso esperando por um desfecho justo, resta torcer para que a tal da investigação exemplar aconteça mesmo — e que novos debates públicos, mais lúcidos, possam se desenrolar nas redes.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.