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Quem odeia ouvir ‘não’ dificilmente vai ganhar algum ‘sim’

Luiza Sahd

03/10/2018 04h00

 

Foto: Reprodução/ Mr Babies

Primeiramente, é tudo verdade essa história de "não é não". Respeitar limites alheios é o mínimo que uma pessoa pode fazer na qualidade de ser humano.

Em outros assuntos, essa palavrinha de apenas três letras sempre me assustou de maneira desproporcional — vide certos desmaios que tive na infância. Sem suspeitar que meu ofício seria basicamente escutar um monte de "nãos", escolhi o jornalismo depois de uma breve carreira como professora. Desde então, acordo e durmo escutando "não quero dar essa entrevista", "não temos interesse na pauta", "não podemos pagar esse custo"; "não temos mais prazo", "não concordo com o que está escrito" e por aí vai. É ridículo como sempre acabamos indo parar nos lugares mais temidos por nós. Repare.

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Trabalhando como gestora de "nãos" há quase uma década, foi inevitável banalizar um pouco o peso da palavra, até porque seria impossível continuar levantando da cama se eu tomasse todas essas negativas como algo pessoal. Inventaram aquele ditado de "o não eu já tenho, então vou correr atrás do sim" e tem a adaptação dele: "o não eu já tenho, agora só falta a humilhação". Amo ambos, mas gosto particularmente do último porque é mais realista — um "não" dificilmente vira "sim". Por outro lado, se sentir humilhado por negativas é um dos piores vacilos que a nossa sociedade já normalizou.

Olhando bem, o "não" anda sempre de mãozinhas dadas com o nosso medo de rejeição. Se ele fosse o Chitãozinho, a rejeição seria o Xororó. Se fosse o Cristiano Ronaldo, a rejeição seria o espelho. Nesse caso, é óbvio que a gente tenta driblar todas as negativas possíveis, incluindo oportunidades de sim que estão obscuras. Tudo certo se você acredita que só existe campeão no mundo, exceto você na calada da noite.

Para não se sentir um lixo diante de rejeições, talvez a melhor alternativa seja entubar cada "não" como uma saída errada de labirinto. Biologicamente, nem somos tão diferentes de ratinhos! Você dobrou à esquerda e deu de cara com a parede. É normal querer tirar as calças e pisar em cima de tanto ódio por refazer parte do caminho, mas, provavelmente, isso aí que te foi negado não te levaria a parte alguma. A entrevista de emprego que não rolou, o romance que miou ou a festa para a qual você não foi convidado: tudo isso são roupas que não te servem, mesmo que isso seja transitório. E roupa errada incomoda, aperta e sempre acaba rasgando, deixando nossa bunda à mostra.

Por otimismo ou resiliência, é mais agradável acreditar sinceramente que sempre chegamos onde temos capacidade de chegar — demorando mais ou menos, de acordo com o fôlego do momento.

Tendo isso em mente, em junho, recebi um dos "sim" mais gostosos da vida e fui cobrir um evento de gastronomia em Londres. Tudo muito legal, mas sabe quem não estava de acordo com a minha ida? A rapazeada lá da polícia de fronteira.

Marquei no relógio as quase duas horas que perdi tentando convencer sabe Deus quantos oficiais britânicos de que eu estava mesmo indo passar uma semana resenhando comida e que a ideia era realmente voltar para a Espanha, onde tenho residência, cachorros e ainda consigo pagar o preço do pão, por exemplo. Não havia documento que bastasse pro pessoal acreditar na minha palavra. Faltou muito pouco para eu desistir do trabalho e recomendar que os oficiais enfiassem aquela ilha onde fosse melhor pra eles. Foi então que lembrei de um amigo dizendo, dias antes, "é incrível como você tem mais paciência para esperar um sim do que as pessoas têm paciência de continuar dizendo não".

Quando o guarda perguntou o centésimo detalhe sobre o festival para o qual ele estava me atrasando, puxei o celular do bolso, comecei a mostrar fotos de comida comentando as receitas e insistindo com veemência que ele não poderia ficar de fora de um evento desses. Foram breves segundos inventando especiarias e técnicas gastronômicas chatíssimas até ele suspirar profundamente e me mandar passar.

Dessa ocasião, guardei — além de um profundo bode do Brexit — uma lição razoável sobre ter paciência com quem desconfia da minha honestidade, capacidade ou valor. Pode mandar mais "nãos", sem problemas. Estarei sempre a postos para o sim merecido, mesmo que ele chegue atrasado. Digamos que tenho inclusive um certo tempo a perder, mas não tanto a ponto de recusar algo que eu sempre quis porque recebi uma primeira resposta negativa. Dizer "agora não quero mais", por orgulho, é assinar o atestado de energia desperdiçada. Que tipo de pessoa batalha por algo que não deseja?

O "não" é amigo do improviso, o improviso é amigo da criatividade e a criatividade é tipo um escudo anti-perrengue. O gesto seguinte ao "não" deveria ser aquela olhada ao redor para checar quantos "sim" ainda estão disponíveis.

Por um lado, não existe porta que não se abra com a chave certa. Por outro, nada garante que teremos todas à mão quando necessário. Diante de uma porta meio emperrada, vale sempre lembrar do nosso molho de chaves coletadas ao longo da vida e, se nenhuma funcionar, dar uma volta mais longa até o destino. Vale até forjar chaves novas. Só não vale jogar fora o que temos e desistir do caminho.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.