Pensando em fugir do Brasil? Prepare-se para ser contrariado
Luiza Sahd
01/10/2018 04h23
A gente sabe que classe média "sofre". Não suporto fazer queixas típicas de classe média porque, bom, olhando um pouquinho melhor pros lados sempre tem alguém com problemas muito mais urgentes. Por outro lado, classe média é o que eu sou — e infelizmente ainda não inventaram modo de fugir do próprio corpo ou da mente, então a gente vai fugindo para outros lugares até entender essa parte aí.
Talvez tentando fugir de coisas impossíveis de escapar, vim para a Madri em 2015 e sigo rindo da minha própria cara toda vez que não entendo o funcionar do país ou do continente de modo geral. A gente tem essa mania besta (e talvez bem ligada à sobrevivência da espécie) de querer só o melhor de tudo. Trago más notícias: nem sempre é possível fazer as coisas da melhor forma longe de casa. Na maior parte dos casos, resta dançar conforme a música — e fazer carinha de quem tá gostando demais. Caso contrário, te perguntam por que você não volta pra casa.
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No Brasil, temos uma maneira muito peculiar de lidar com as pessoas: pode parecer, à primeira vista, que somos muito carinhosos. Depois de um tempo, a gente percebe que esse dengo todo, essa cordialidade e simpatia estão mais ligados com o famoso "jeitinho brasileiro" que tem como objetivo evitar receber algum "não" em qualquer circunstância. Sabe quando um estabelecimento tá fechando e a gente dá aquele sorrisinho terno para pedir um minuto e resolver só aquele detalhe de última hora que muda a nossa vida? Fora do Brasil, isso aí não existe. É porta na cara atrás de porta na cara pra gente aprender que ninguém é obrigado a ser prestativo com estranhos — ou que toda exceção pode ter aquele tiquinho de corrupção, no final das contas.
Deve ser justamente por esse motivo que se diz que as pessoas do hemisfério norte são frias: elas não sorriem por motivo torpe (talvez se estiverem te paquerando, sim) justamente porque odeiam favores. Fazer ou receber.
Durante os últimos meses, passei sei lá quantos dias pensando sobre a dificuldade de criar uma dinâmica de intimidade com pessoas daqui. Com quase quatro anos de residência na cidade, o total de relações íntimas que construí com espanhóis foi zero. Por quê?
Além de pensar olhando para o teto, fiz perguntas estratégicas para os conhecidos locais. Ao que tudo indica, as relações de intimidade no Brasil se criam a partir da privação. Assim: não temos a estrutura mínima para cuidar do filho? A amiga dá uma força. Não temos como chegar num pronto-socorro no meio da noite? O vizinho dá uma carona. E aquela cagada financeira que a gente cometeu? Vai sobrar pra um cunhado, pra um colega antigo.
Na Europa, as pessoas têm orgulho (talvez até excessivo) de dar conta dos próprios problemas. O sentido de cooperação não é individual — você ajudando o coleguinha ao lado — mas coletivo. O europeu, na maioria dos casos, só coopera com o que acredita ser um benefício para a sociedade como um todo.
Num cenário assim, é natural se sentir isolado afetivamente das pessoas. Existe um ditado madrilenho que é "não me conte seus problemas". Compreensível para uma sociedade que, há menos de um século, teve a cidade inteira destruída pela Guerra Civil. O que pode ser pior do que perder nossos entes, casas e passar fome? Nada. Desde então, é meio que proibido se queixar de barriga cheia. Você que se vire com a sua treta de classe média pra lá.
Eu poderia apelar para argumentos mais objetivos tipo o fato de que aqui as casas não têm ralo e você passaria o resto da sua vida esfregando chão com mopa (que só espalha a sujeira) e pensando no tempo bom em que se sentia vivendo num ambiente limpo porque pôde esfregar o piso com uma boa vassoura de piaçava, muita água e desinfetante. Poderia falar também que arroz com feijão é mil vezes melhor do que pão seco com alguma coisa em cima — popularmente conhecido como tapas — e denunciar que, aqui, esse negócio de jantar é coisa para datas especiais. Sei lá quantas vezes eu me desesperei com a barriguinha roncando e os amigos me olhando torto porque eu queria sentar e mandar ver num prato de verdade.
Morar fora é se despedir todos os dias. Sempre tive dificuldade com despedidas mas, há quase quatro anos, durmo e acordo me despedindo de pessoas amadas, de hábitos da vida inteira, de crenças dadas como certas, da sensação de pertencimento, da paz de não precisar estar alerta 24/7 para não fazer nada esquisito aos olhos dos "donos" do pedaço onde vivo agora.
Fugir do Brasil não é nada mau. Tudo funciona, é verdade. O problema é a gente funcionar como deveria para ter a sociedade que outros países puderam construir. Resumidamente: o Brasil é como é, para bem e para mal, porque nós somos como somos. Para ter outra realidade, também é preciso um bom esforço para ser outra pessoa.
Se você já não curte ser contrariado em casa, imagine ser contrariado fora dela.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.