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Cabo Daciolo fugiu para o monte; eu fugi para o Caminho de Santiago

Luiza Sahd

26/09/2018 04h00

 

O caminho de santiago (Foto: iStock)

Se um vidente revelasse, há um ano, que eu peregrinaria pelo Caminho de Santiago de Compostela em 2018, certamente eu precisaria me escorar em uma parede para gargalhar. Quem em sã consciência sai cruzando vilarejos à pé, se enfiando em matagais, na era da tecnologia — e com mochila pesada nas costas! — para não ganhar nem prêmio no final?

Talvez o Cabo Daciolo, que foi jejuar no monte e deve curtir esse tipo de programa. Fora ele, eu mesma, na semana passada.

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Acontece que o que houve comigo antes do Caminho foi medonho: do final de 2017 até fevereiro de 2018, eu não conseguia me manter em pé por cinco minutos consecutivos, graças a uma sequência de cirurgias que me descaram também da cabeça e do coração.

Quando você fica na cama por muitas semanas sem poder para preparar sua própria comida, sair para tomar um ar fresco, tomar um banho decente, ir ao supermercado, passear com os cachorros ou simplesmente para ver movimento e tal, você começa a ter pensamentos estranhos. Ao dar os primeiros passos depois de operar, um músculo da minha bunda repuxava. Foi nessa ocasião que me prometi que viraria uma exímia andarilha caso não ficasse com sequelas pós-operatórias. Não é novidade pra ninguém que a gente só dê valor ao que perde.

Lá para março, fiquei curada e, mais do que depressa, fiz o que qualquer um faria no meu lugar: esqueci o compromisso fitness. Sendo honesta, até passei a sentir prazer em longas caminhadas quando finalmente consegui voltar à ativa e comecei a fazer ameaças de me embrenhar no Caminho de Santiago da Compostela para nunca mais voltar quando as coisas ficavam difíceis, mas isso nunca foi um projeto sério. Ou não era — até eu jogar tanto pro universo que um amigo provocou e aceitei "experimentar" a trilha de Santiago por uma semana.

Antes de mais nada, peço perdão aos peregrinos sérios quando descrevo essa experiência. É que sou paulistana e nunca tive férias (nem coragem) de viver a experiência completa de 40 dias. Então, fica aqui um sample do que pode acontecer com sujeitos pouco familiarizados com a natureza num rolê desses.

A primeira dor do Caminho veio antes mesmo da viagem, quando me despedi do secador de cabelos. Mesmo se eu decidisse carregar esse peso no mochilão, seria um mico fazer penteados num albergue municipal cheio de gente tão seriamente hippie que resolveu caminhar por 700 km sem se ater a vaidades. Em todo caso, o blush e o rímel eu levei sim porque também sou filha de Deus.

Chegando no Albergue de partida, em Oviedo (Espanha), achei estranha a quantidade de peregrinos que ficava deitada feito vampiro a tarde toda. Muitos não se davam o trabalho de conhecer a cidade, mas qual foi minha surpresa ao chegar no banheiro e encontrar um secador de cabelos! Só pensei que "rapaz, parece que o Caminho de Santiago é místico mesmo" e fui dar uma volta de madeixas bem sedosas sem me envergonhar tanto da vaidade.

No dia seguinte, andei a pé de Oviedo a Grado — cerca de 25 km de muita pirambeira pra pouca trilha plana — e cheguei no albergue seguinte notando que, mesmo se existisse secador por lá, eu jamais teria forças para segurá-lo junto com uma escova de cabelo. Obviamente, virei eu a peregrina vampira que só se mexeu da cama pra comer (e chorar de dor enquanto passava gelo nos quadris castigados).

As fotos da versão de teste do Caminho ficaram ótimas (0s andares são a equivalência de ladeiras na rota):

Por um lado, posso admitir que fazer esforços físicos além do seu limite pessoal produz uma quantidade de serotonina meio alucinógena. Por outro, juro de pé junto que o Caminho é místico mesmo: você atravessa horas e horas vendo só paisagens bucólicas sem sinal de presença humana, mas todas (e eu disse todas!) as vezes em que eu peguei a saída errada em alguma bifurcação, apareceu gente de trás de moita para assobiar ou berrar apontando a rota certa. O primeiro deles foi um senhor com idade entre 80 e 800 anos, segurando um cajado, que apontou uma catedral e desapareceu da mesma forma que apareceu. Quem sou eu pra problematizar?

Quando cogitei em me assustar com isso, percebi que sou uma fabriquinha de medos. Eu não tinha agenda para temer assombração em estrada vazia antes do sol nascer porque já estava ocupada demais tentando não pisar em cobras. Vi uma cobra morta, lembrei que onde há cobra morta há cobra viva e minha peregrinação ganhou uma camada a mais de adrenalina. Não que precisasse.

Os primeiros 8 km do dia eram uma delícia para mim, mas depois deles, tudo mudava de figura: a mochila parecia quadruplicar de peso, a água não era suficiente até a próxima fonte, as placas pareciam confusas, a fome me fazia olhar estranho para as tetas das vacas e os milharais. Eu tava só o espantalho do Fandangos mesmo, ninguém ia notar se eu parasse para comer milho cru agindo bem naturalmente.

Ainda sobre medos, uma coisa "boa" de pensar lá pelo vigésimo quilômetro do dia, quando a gente quer largar toda a palhaçada de peregrinação e testar se o Uber chega no vilarejo é essa mesma: ninguém vai te tirar dali em algo motorizado a não ser uma viatura ou uma ambulância. Se você é uma pessoa ética, tenta não aprontar essa presepada para os servidores e faz uma força a mais com as próprias pernas. Particularmente, quando minha vontade de desistir pesava demais, eu brincava de imaginar que meu avião caiu ali e só teria salvação andando até a cidade seguinte. Nunca falhou.

Piadas à parte, o Caminho de Santiago oferece a oportunidade única de ficar só com os nossos corpos, com a consequência das nossas escolhas (cada alfinete faz diferença na mochila), com a nossa vontade de desistir das coisas quando elas são árduas — mas não impossíveis — e com o nosso sentimento absurdo de autopreservação. "E se eu chegar e não conseguir um teto?", "E se eu desmaiar de fome?", "E se eu me perder de verdade?", "E se um animal bizarro me morder?" foram pensamentos recorrentes que me deram vontade de matar minha ansiedade usando um travesseiro.

Assim como a solidão marca demais por ali, os encontros também são bonitos. Desde a saída dos albergues, os moradores locais te veem de mochila e repetem a frase "Buen Camino!". Quando você começa a vislumbrar traços de civilização para desembocar na cidade de destino do dia, as pessoas — em geral, idosos — sempre olham a nossa cara de cansaço e nos animam com frases como "já está chegando", "falta muito pouco" ou "você já vai descansar". Mais uma vez, pensei que o Caminho talvez fosse místico por mudar o peso de todas as coisas. Uma simples frase como essa na hora em que seu corpo e mente já estão exauridos é motivo suficiente para limpar o suor do bigode e continuar andando. Fora isso, imagina a paciência do cidadão que diz palavras bonitas todos os dias para dezenas de peregrinos que passam na porta deles.

É claro que uma pessoa de antecedentes sedentários e predileção por Coca-Cola normal não passa 7 horas caminhando diariamente em pântanos e sai impune da experiência. A cada quilômetro percorrido, eu pensava mais e mais sobre a força e a falência do meu corpo, sobre a importância de fazer nada e sobre a p*rra da unha do pé que estava encravando porque optei por ir com tênis de corrida ao invés de comprar botas de montanhismo.

No Caminho de Santiago de Compostela, sozinha com meus perrengues e pensamentos, percebi como a nossa própria companhia pode ser agradável ou odiosa, como a gente pode se cuidar ou se abandonar, mas principalmente, percebi como a gente não manja nada sobre contato com a natureza. Em alguma altura de um dia difícil, um burro de carga se aproximou relinchando. Achei uma graça. Quando olhei mais de perto, percebi que ele relinchava de dor porque tinha o rostinho forrado de moscas e eu não poderia fazer nada para ajudar. Chorei.

A gente que é de cidade grande tem mania de achar que já viu de tudo nessa vida, mas não conhece o básico sobre o planeta e fica em choque quando descobre que, sei lá, cabra come pedra. Sem esse tipo de contato, é lógico que a pode achar a nossa própria natureza estranha quando ela não corresponde às expectativas de um mundo todo sintético, moderno e cômodo.

Penso nessa experiência como algo lindo, mas tive momentos tenebrosos como o pânico de fracassar que só passou quando lembrei de uma citação lispectoriana: "Desistir também é caminho". Eu e minha unha encravada não aguentamos sete dias de Caminho de Santiago da Compostela e abandonamos no quarto. Minha tristeza só passou quando parei para comer na última cidade e um senhor fez a piada "Es paella o pa nosotros?", que passei os últimos meses garantindo aos amigos da internet que não existia na Espanha — e que o tio do pavê é coisa nossa.

Fora isso, misteriosamente, não tenho conseguido evitar caminhar menos de 7 km por dia desde que voltei. O Caminho de Santiago é místico mesmo. O Daciolo deveria experimentar.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.