Se Brasil fosse um país decente, teria parado por criança grávida
Se o Brasil se preocupasse com suas crianças, teria parado há um ano, quando Ágatha Félix (8) foi assassinada voltando de um passeio com a mãe ou quando João Pedro Mattos Pinto (14) foi morto por um tiro de fuzil pelas costas, dentro da casa de seus tios, na comunidade do Salgueiro. Há dois meses, o país também não parou quando Miguel (5) caiu do nono andar de um prédio em Recife e morreu sozinho enquanto sua mãe cuidava do cachorro dos patrões.
Se há algo com o qual o Brasil nunca se preocupa é com crianças negras já nascidas; prova disso é que os pretendentes a adoção no país só aceitam crianças que não existem: brancas, sem doenças, ainda bebês. E é justamente a este perfil de criança, invisível para os "manifestantes pró-vida", que pertence a garota que engravidou aos 10 anos de idade após sofrer recorrentes violências sexuais desde os seis, fruto dos abusos de um tio de 33 anos.
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Agora, a menina está sendo violentada de forma simbólica pelo Estado, que não só demorou a fornecer o acesso à interrupção legal e segura da gestação a que ela teria direito como também deixou vazar os dados confidenciais da vítima, de modo que uma manifestante da extrema-direita pudesse expô-la em redes sociais. Twitter, Google e Facebook também não tiveram a responsabilidade de remover os posts criminosos da exposição. Por último e mais importante, essa criança deve ter ficado ainda mais assustada quando manifestantes tentaram invadir o hospital com gritos de "assassino" dirigidos à equipe médica que finalmente se dispôs a salvá-la de uma gestação de risco. Esta criança passou quatro anos sendo estuprada e, quando finalmente se livrou do agressor, acabou ganhando novos agressores: uma multidão — e o Estado — interditando o único gesto possível de valorização da vida dela.
Como se protege uma vida?
A vida de toda criança deveria ser protegida integralmente, mas é praticamente impossível proteger de abusos alguém que não recebeu educação sexual desde a infância. Se ninguém nos ensina, bem cedo na vida, que nosso corpo não pode ser manipulado de qualquer jeito por qualquer pessoa, o resultado é este: de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas. Por outro lado, é perfeitamente viável proteger uma criança que já sofreu sucessivos abusos de novas violências, físicas ou psicológicas, o que é exatamente o oposto do que tem acontecido com essa criança. Bastaria fazer o mínimo, protegendo sua identidade e sua integridade emocional. Por causa do vazamento de dados sobre a criança, o procedimento que salvou sua vida ganhou mais importância no debate público do que a história de dor dilacerante pela qual ela vem passando desde a primeira infância.
É assustador monitorar, nas redes, a quantidade de gente que busca outros culpados pelo ocorrido que não sejam o agressor. Com uma busca rápida na internet, é frequente encontrar a pergunta "onde estavam os pais dessa criança nesses quatro anos?". A resposta curta é que o pai está preso, a mãe foi embora e o tio agressor é um ex-presidiário. A menina é cuidada pela avó, que trabalha como vendedora ambulante. Ela leva, portanto, uma vida bastante comum entre as crianças pobres no Brasil.
A preocupação do grupo pró-vida que descobriu o endereço da menina também não contemplou a vida da avó, que passou mal depois de ver sua casa cercada por manifestantes antiaborto hostilizando a família depois de tudo isso e em plena pandemia.
Cuidemos dos vivos
Nem todo mundo que organizou manifestações motivadas por esse crime ignorou os sentimentos da vítima. É importante ressaltar as palavras destas mulheres, para quem a vida desta criança ainda importa: gravidez forçada é tortura.
Lamentar a morte de crianças que sofreram violências institucionais é mais uma barbaridade que vem se naturalizando no país. No caso dessa criança, há algo que ainda pode ser corrigido: ela sobreviveu. Essa criança pode e deve ser cuidada com todo amor, atenção, privacidade e acolhimento que não recebeu desde a infância. A vida dela importa para toda a sociedade — e seu caso deveria se tornar exemplar para que possamos oferecer o mínimo de dignidade a condições de subsistência a vidas que já existem, mas são ignoradas por instituições que têm como única preocupação o monitoramento e a moralização de corpos femininos.
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