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Luiza Sahd

Pode sofrer? Pandemia me isolou num continente e minha cachorra em outro 

Luiza Sahd

15/04/2020 04h00

Em 2018, a gente não só podia passear em Madrid como também era tranquilo sentar no chão juntinhas. (Foto: Arquivo pessoal)

Em meio a uma pandemia, absolutamente todo mundo tem motivos para chorar. Uns muito, outros menos. Desconfio que eu deveria me enquadrar na categoria de quem chora menos, já que mantive trabalhos e um lugar seguro para viver esses dias assustadores. Mas um detalhe bem pequeno — de cinco quilos, para ser exata — me faz chorar diariamente. Por causa do fechamento repentino de fronteiras, estou em um continente e, minha cachorra, em outro.

Hebe chegou em casa com menos de dois meses de idade e completa oito anos em setembro. Ela ganhou esse nome porque é loira, tem pinta de quem ama joias e adora dar selinhos nas pessoas. É impossível dizer quem das duas estragou mais a outra, já que fiz home office durante praticamente todo esse tempo — mas era ela quem me lembrava, diariamente, que fazer pausas para brincar durante o expediente é fundamental. 

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Quando tinha dois anos, Hebe emprenhou e fiz o parto de 5 filhotinhos com uma mão trêmula de medo — já que o primeiro filhote entalou — e a outra no celular, recebendo orientações do veterinário, que estava longe demais para ajudar. Deu tudo certo. Uns meses depois, estávamos nós juntas e trêmulas de novo: dessa vez, ela estava em uma caixinha aos meus pés, em um avião rumo a Madrid, onde moramos pelos últimos cinco anos, grudadas, até eu resolver voltar a São Paulo. Com ela, lógico.

"Infelizmente nem tudo é exatamente como a gente quer"

Lá nos anos 80 o Guilherme Arantes cantou isso aí e ele estava tão certo que a gente repete até hoje. Quando marquei minha passagem para sair de Madrid, a ideia era voltar a São Paulo com a cachorra a tiracolo, mas fui aconselhada por dez entre dez pessoas com bom senso a deixá-la temporariamente com meu ex-marido — que cuida muito bem dela e do nosso outro cão em comum, Romeu, que escolheu morar com ele quando nos separamos.

Deixando a Hebe temporariamente em Madrid até achar casa em São Paulo, meu plano era estressá-la o menos possível com sucessivas mudanças, além de poupar meus amigos-anfitriões de imprevistos caninos enquanto eles me  ̶a̶g̶u̶e̶n̶t̶a̶v̶a̶m̶ hospedavam até que eu estabelecesse trabalho e endereço fixo. Parecia um plano perfeito, mas, ao que tudo indica, não existe plano perfeito no planeta Terra 2020.

Em meados de março, eu já tinha casa em vista para morar com a Hebe em São Paulo, mas sabe o que eu não tinha mais? Voos disponíveis para buscá-la. Continuo sem ter outras coisas que ajudariam: algum conhecido voltando de Madrid para trazê-la no voo (já que cães não são vetores de Covid-19) ou, pelo menos, serenidade para não chorar umas três vezes ao dia por não conseguir explicar a um cachorro que ele não foi e nunca será abandonado.

Cientistas, eu imploro: depois que vocês conseguirem encontrar remédios e vacinas para a Covid-19, por favor, estudem um meio para a gente explicar coisas importantes assim para os cães. Eles não merecem achar que a gente se mandou, sem mais nem menos, e não volta mais. 

 

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Todos os dias, acompanho pelo noticiário dramas relacionados ao novo coronavírus infinitamente mais tristes do que o meu: mães que não podem se despedir dos filhos e vice-versa, pessoas sendo privadas de seus rituais fúnebres, gente que morreu e não pôde nem ser retirada de casa — ou ter um destino digno para seus restos mortais. Gente triste. Gente angustiada ou entre a vida e a morte. Gente com fome ou impedida de se isolar. Gente que vai morrer e ainda nem sabe disso. Tenho certeza de que essas pessoas adorariam trocar os problemas delas pelos meus problemas de agora com a cachorra, mas nem isso me deixa esquecer que não tenho ideia de quando poderei tirar uma soneca com a Hebe aninhada nas minhas pernas para fugir dos problemas do mundo, como sempre fizemos. 

Ainda não tive notícia de nenhum caso como o meu, mas me parece estatisticamente impossível que nenhum tutor esteja vivendo o mesmo impasse. Se repatriar seres humanos já está difícil no momento, repatriar animais só não deve parecer sandice para gente como eu, que já escrevi até para o consulado brasileiro em Madrid pedindo orientações para tentar resolver o problema, mas não tive resposta.

O sofrimento de cães e seus donos é legítimo em um panorama mundial tão trágico? Eu não sei. Pode ser que não. À parte desses sopros de consciência, sigo chorando escondida enquanto torço para que nenhum outro cachorro e nenhum outro tutor estejam passando por esse tipo de agonia, em nenhum lugar. Torço também por um milagre que me faça conseguir ter a Hebe de volta e, por último mas não menos importante, para que todos vocês que têm cães estejam conscientes do privilégio que é abraçar esses bichos na temporada em que um abraço entre humanos virou comportamento de risco.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.