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Luiza Sahd

Quatro lições fundamentais que a covid-19 pode deixar para a humanidade

Luiza Sahd

24/03/2020 04h00

Olhando um pouco além do medo da morte e da crise do papel higiênico, a pandemia mexe com tudo o que precisamos mexer. (Ilustração: Reprodução/ Henn Kim)

"A humanidade agora está enfrentando uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Elas moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura (…) Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva – mas habitaremos um mundo diferente." 

Com essas palavras, o historiador Yuval Harari, autor dos best sellers "Sapiens: Uma breve história da humanidade" e "Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã" descreve o impacto da pandemia do novo coronavírus neste artigo brilhante — como tudo o que este homem faz –, publicado pelo Financial Times na última sexta-feira (20). 

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Como jornalista — obrigada a consumir e replicar, em tempo real, os dados sobre a pandemia no Brasil e no mundo — eu adoraria ser portadora de melhores notícias, mas a verdade é que temos pela frente um cenário de guerra, repleto de frustração, perdas afetivas e materiais, além de todo o desequilíbrio psíquico coletivo que uma situação como essa provoca.

Por pelo menos seis meses, as notícias ruins vão chegar em profusão e entrar pelos sete buracos da nossa cabeça. Não há como e nem por que se esconder delas: pelo bem de todos, estamos presos em casa, esperando pelas boas notícias para retomar a "vida normal". Por outro lado, só um incidente tão sério como uma pandemia global é capaz de acelerar aprendizados que levaríamos décadas para assimilar enquanto sociedade. 

1- Não dá para menosprezar a ciência

O negacionismo está na moda. No mundo inteiro, líderes políticos e religiosos em ascensão questionam a veracidade de problemas fundamentais como a crise climática, a importância das vacinas, o formato da Terra e até os riscos que o surto de covid-19 pode trazer — inclusive para quem não estiver contaminado mas precisa de um leito de hospital por qualquer outro motivo.

Agora, os mesmos líderes que debochavam da comunidade científica até o mês passado (e que cortavam verbas de educação e pesquisa sistematicamente) andam pressionando os cientistas para que ofereçam vacinas e remédios capazes de conter a pandemia do novo coronavírus. Por muita bravata que se faça contra o método científico, é sempre ele que oferece as respostas mais confiáveis em situações-limite como essa. 

Embora a ciência ainda não seja capaz de oferecer soluções instantâneas para todas as perguntas do mundo, ela ainda é a principal fonte de conforto e segurança para a nossa espécie. Todo mundo que já foi salvo por alguma intervenção médica deveria saber disso.

2- A imprensa é uma ferramenta de poder para a população

Pandemia e fake news são uma combinação absolutamente desastrosa. Uma população bem informada sobre o que está acontecendo local e globalmente é uma população com poder para fazer as escolhas mais rápidas, responsáveis e adequadas para a contenção da crise. Sabe quem trabalha dia e noite para verificar se as informações veiculadas são verdadeiras ou falsas? A imprensa. Não o seu primo que manda corrente do zap dizendo que gargarejo de sal e vinagre mata o coronavírus.

Liberdade de imprensa e cuidado na apuração de notícias é fundamental em qualquer momento da história, mas é ainda mais urgente que as informações verdadeiras circulem com agilidade em um quadro de crise global. Ninguém toma decisões sensatas com base em informações falsas. 

Aqui, gostaria de registrar para a posteridade a fala potencialmente genocida de Jair Bolsonaro: "Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da grande mídia nessa questão do coronavírus". Quando o surto terminar, gostaria muito de ouvi-lo novamente a esse respeito.

3- Ninguém está a salvo em uma sociedade desigual

O novo coronavírus não escolhe suas vítimas por poder aquisitivo. Ele se espalha de forma tão eficiente que um surto restrito aos moradores de uma mansão ou aos detentos de um presídio podem representar enorme ameaça para quem nunca passou na porta de nenhum desses lugares. A lógica é bem simples: os empregados da mansão podem levar o vírus do patrão para os vizinhos da comunidade; os funcionários do presídio podem contaminar um empregado da mansão, que leva o vírus para o patrão. Os vírus são extremamente democráticos — fazem o mal sem olhar a quem.

Outro aspecto interessante da pandemia é provar que não existe segurança sanitária para ninguém se não houver segurança sanitária para todos. No futuro, isso pode fazer uma enorme diferença na forma como lidamos com o descaso dedicado às populações marginalizadas nesse sentido: sem recursos básicos de higiene e saúde, qualquer pessoa se torna um potencial vetor de doenças que podem afetar mesmo o mais rico dos homens — como já está acontecendo com políticos, empresários e estrelas de cinema que testaram positivo para covid-19. Eles podem continuar vivendo encastelados, mas não estão à salvo enquanto toda a população não tiver acesso a saneamento básico e instrução para desfrutar desse direito.

4- A solidariedade é a nossa única salvação

E ela andava fora de moda. Somente uma operação global de cooperação como a que estamos fazendo — com gente do mundo inteiro se isolando e redobrando os cuidados para não dissipar o vírus — pode nos salvar de uma desgraça ainda maior do que a que já se anuncia. Isso serve também para a questão da crise econômica: se os países e instituições mais ricos fizerem a parte que lhes cabe, a crise econômica pode ser amenizada.

Em um sistema tão individualista e predatório como o capitalismo, é quase profético que a gente dependa um dos outros para que todo mundo evite de se dar muito mal. A cooperação entre comunidades locais e a comunidade global ainda é a arma mais poderosa que existe contra o inimigo que não podemos enxergar para matar com aparato bélico. Nesse caso, nada no mundo está tão desatualizado quanto o gesto de arminha e o estilo de governo que não está aberto a cooperar internacionalmente pelo bem-estar das pessoas.

Comecei esse post com uma reflexão do Yuval Harari e é também com uma fala dele que vou encerrá-lo, torcendo para que ninguém esqueça que existe esperança e que é preciso começar pelo mais simples: lavando as mãos.

"Anteriormente, mesmo médicos e enfermeiros passavam de uma operação cirúrgica para outra sem lavar as mãos. Hoje, bilhões de pessoas diariamente lavam as mãos, não porque têm medo da polícia, mas porque entendem os fatos. Lavo minhas mãos com sabão porque ouvi falar de vírus e bactérias, entendo que esses pequenos organismos causam doenças e sei que o sabão pode removê-las (…) Uma população motivada e bem informada é geralmente muito mais poderosa e eficaz do que uma população ignorada e policiada."

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.