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Luiza Sahd

Epidemia da produtividade: por que descansar pega tão mal?

Luiza Sahd

07/01/2020 04h00

Se o seu cérebro nunca deu curto-circuito, você já é um vitorioso. Ilustração: Reprodução/ Egle Plytnikaite

 

Nem todo mundo teve descanso no recesso de final de ano, mas, quem teve, sabe pelo menos duas coisas:

  • Pode ser bem estranho, em pleno 2020, usar as férias para ficar só passeando ou curtindo uma preguiça sem sentir culpa por não fazer nada que renda frutos concretos — principalmente quando você não é milionário ou herdeiro;
  • Nesse cenário, é difícil escolher programas realmente relaxantes que não envolvam atividades úteis para um futuro próximo. Atire a primeira pedra quem nunca usou férias para estudar, atualizar o currículo, fazer a Marie Kondo e organizar cada milímetro da casa ou se dedicar a projetos pessoais que acabam sempre adiados por compromissos mais básicos ou urgentes.

Trabalhando como jornalista freelancer há quase uma década, vi a epidemia da produtividade me pegar de jeito nos últimos anos. Pesquisando e escrevendo sobre saúde mental e bem-estar constantemente, decidi tomar mais tempo para estruturar esse estilo de vida: passei a cozinhar todos os dias ao invés de comer fora, limpo a casa ao invés de contratar faxina, faço todos os trajetos possíveis caminhando para incluir a atividade física na rotina e por aí vai. Mas sabe quando eu relaxei fazendo essas tarefas básicas? Quase nunca.

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Enquanto faço supermercado, cozinho ou limpo a casa, escuto podcasts e audiolivros; fiz uma viagem longa de ônibus e me peguei "aproveitando o trajeto" para estudar idiomas; durante o recesso de Ano-Novo, usei meu tempo livre sei lá quantas vezes para anotar ideias de trabalhos para os próximos meses. Nos momentos em que fiquei realmente à toa assistindo qualquer besteira na televisão ou batendo perna pela cidade, meu prazer vinha intercalado com pontadas de culpa no peito que teimei em reprimir sem muito sucesso.

Não existe descanso pleno para quem está sempre preocupado com um futuro incerto. Essa poderia ser uma circunstância particular de trabalhadores autônomos, mas, conversando com amigos e colegas que têm seus trabalhos fixos há tantos anos quanto não tenho um, descobri que a ansiedade generalizada é — como o próprio nome sugere — generalizada.


Preocupação com o futuro ou desprezo pelo presente?

 

Este artigo do biólogo e barista canadense Keenan Guillas, ainda sem tradução para o português, é de partir o coração de qualquer pessoa que já tenha sentido na pele a paranoia da produtividade. "Estagnação é a ausência de progresso, mas progresso é um desejo de se afastar do seu eu atual e se transformar em alguém diferente e melhor. Progresso é um desejo de mudar — e um desejo de mudar indica que você não está satisfeito com quem você é. Então, recusar momentos de estagnação em nossa vida cotidiana é como afirmar que estamos infelizes ou insatisfeitos com o que temos. Deveríamos aceitar um certo grau de estagnação em nossas rotinas, porque isso sinaliza que estamos felizes no presente", diz Guillas.

Trocando em miúdos: se vivemos pulando de objetivo em objetivo a ser alcançado, a que horas a gente comemora nossas conquistas antes de partir para a próxima batalha? Você se surpreenderia caso se perguntasse intimamente quando foi a última vez que comemorou e descansou de maneira apropriada depois de atingir algum objetivo importante da sua vida.

Muitos filósofos, neurologistas, psicanalistas e pensadores em geral se debruçaram sobre esse tema; Lacan garantiu que não conseguimos nem tocar com as pontas dos dedos aquilo o que tanto sonhamos quando nossas metas são finalmente alcançadas: a realidade é sempre diferente do que se imaginou (e não existe realização de sonho suficiente para tampar o nosso rombo existencial), então continuamos buscando novas metas, geralmente sem pausa, para garantir uma felicidade que nunca chega.

Descanso x mindfulness

Ninguém que tenha trabalhado feito cão nessa década precisa ser o Lacan para concluir que essa característica tão humana de viver no descontentamento saiu de controle nos últimos tempos. Assim como a tecnologia possibilitou que uma parte significativa dos nossos problemas sejam solucionados em poucos cliques na internet, ela tem feito com que a gente se frustre demais sempre que algum problema não está a um clique de distância de uma solução.

Os prazeres que sentimos ultimamente chegam rápido e, na mesma velocidade, são esquecidos. Queremos o próximo prazer e, quando ele chega, já estamos preocupados com o seguinte. Não há mindfulness que resolva esse estilo de vida que a gente leva — principalmente quando o mindfulness vira um compromisso a mais na agenda de quem já não sabe mais desfrutar de tempo livre sem se sentir um vagabundo sem-vergonha (ou sem sentir medo da precariedade futura causada por vadiagem).

A culpa e o medo são, aliás, os regentes mais poderosos do mundo em que vivemos. Não é pouca ambição sonhar com uma vida plena em que as decisões que tomamos sejam mais baseadas nas nossas esperanças do que nos nossos grandes medos. A medida de enfrentamento que podemos tomar, nesse caso, é mais modesta do que se imagina: descansar e abraçar um pouco a estagnação cotidiana citada por Guillas — até porque é impossível reunir energia suficiente para sentir esperança quando se está exausto.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.