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Luiza Sahd

Por que o sucesso da cantora Rosalía incomoda gente do mundo inteiro?

Luiza Sahd

19/11/2019 04h00

Essa moça deixa você irritado? (Rich Fury/Getty Images/AFP

Existem dois tipos de pessoas: as que criticam Rosalía e as pessoas de bem. Antes de escolher o seu lado, permita-me contar por que a gente deveria deixar esta mulher ser feliz em paz, com seus Grammy Latinos, com suas influências do flamenco, com as unhas gigantes e absurdas, com o Supremo, com tudo.

Aos 25 anos de idade, a cantora catalã chamou a atenção da imprensa musical dos quatro cantos do mundo com o lançamento de seu segundo disco, "El Mal Querer" (2018), inspirado principalmente pela cultura do flamenco — estilo musical de tradição milenar que nunca chegou a ser especialmente celebrado fora da Espanha. Os problemas de Rosalía começaram aí: quanto mais fama a cantora ganhava na mídia internacional, mais espanhóis apareciam para lembrar que Rosalía não nasceu na região da Andaluzia, berço do flamenco. Com isso, muito se insinuou que o sucesso de Rosalía teria sido fruto de apropriação cultural.

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Em praticamente todas as entrevistas de Rosalía, a artista conta que se formou em flamenco na universidade e que é apaixonada por esse estilo musical desde os 13 anos de idade, quando começou a escutar Camarón de la Isla e outros mestres do gênero. Diante da qualificação incontestável de Rosalía para compor música flamenca, uma galera sugeriu, então, que ela abdicasse um pouco da atenção midiática que está recebendo para dar voz aos artistas que cantam flamenco raiz e não ganham destaque. Se falar desses artistas em tudo quanto é entrevista para tudo quanto é meio de comunicação internacional não é dar voz a eles, sabe-se lá o que poderia ser. Parar de cantar, talvez? Marcar um show e enviar esses artistas no lugar dela? Jamais descobriremos.

Se você acha que tá pouco de aborrecimento para uma artista espanhola que cria canções inspiradas na própria cultura espanhola e é chamada de engodo, sente-se confortavelmente porque essa é apenas a primeira de uma longa lista de acusações injustas que Rosalía sofre. Como o colega Guillermo Alonso detalhou neste excelente artigo, a cantora ainda foi chamada de "isentona" por não se posicionar a respeito dos movimentos separatistas da Catalunha, mas quando se posicionou publicamente contra o partido espanhol de ultra-direita Vox, também escutou que anda de jatinho particular e, portanto, é elitista.

Bom, mas daí a Rosalía resolveu homenagear a arte da região onde nasceu compondo uma rumba catalã chamada "Milionària". Tinha tudo para dar certo já que a música é um primor e ela não estava se apropriando culturalmente de nada, mas até professor de gramática catalã apareceu na imprensa para apontar "traços de espanholismos" em três palavras da canção. Tem mais: reclamaram quando Rosalía gravou flamenco e rumba catalã, mas reclamaram ainda mais quando ela gravou faixas de reggaeton como o contagiante "Con Altura", já que reggaeton é considerado música de massas. Um elefante incomoda muita gente; uma Rosalía incomoda muito mais.

Nos últimos tempos, a cantora também foi criticada duramente na Espanha por cobrar mais de 500.000 euros por show. Devo dizer que já fui a uma dessas apresentações e a produção é impecável, com dançarinos, efeitos especiais, pirotecnia e tal. Ela cobra mesmo uma grana preta para se apresentar, mas nunca tinha lido críticas tão duras a artistas de outros países que tocam frequentemente nos grandes festivais espanhóis e cobram a mesma quantia — ou até mais.

No Brasil, Rosalía foi desqualificada por internautas na última semana, quando ganhou três prêmios no Grammy Latino 2019. Muita gente ficou indignada porque a cantora não é latina e, mesmo assim, foi a grande estrela da premiação. Primeiro, é preciso contar que o Grammy Latino premia artistas que gravam músicas em língua portuguesa e espanhola, não importando o país de origem deles. Depois, fico curiosa para saber onde esse pessoal reclamão estava quando o Enrique Iglesias (espanhol) o Alejandro Sanz (espanhol) e a Laura Pausini (italiana) foram contemplados com um Grammy Latino.

É fácil enumerar algumas dezenas de artistas que recebem tanto ou mais destaque midiático do que Rosalía (alguns com talento questionável, inclusive) sem precisar responder o tempo todo por que são dignos de ocupar esses espaços. De novo, Rosalía incomoda muita gente. Não é para menos: a cantora já foi elogiada por Barack Obama, já deixou de cantar no aniversário da Madonna porque o cachê não era atraente, não parece se torturar para corresponder a padrões estéticos irreais como tantas artistas pop fazem. Uma mulher tão jovem, tão autêntica e tão segura dos próprios talentos acaba se tornando uma figura assombrosa mesmo.

Lembro com muito ranço da vez em que eu estava de conversa mole com um rapaz espanhol e ele perguntou sobre o que eu escrevia. Expliquei. No dia seguinte, ele mandou mensagem com uma perguntinha bem cínica: "vai escrever sobre o que hoje? Rosalía?" e contou que não gostava de cantoras pop. A profissão do moço: músico em uma banda cover de… artistas de pop rock. Aparentemente, está permitido fazer música pop se você não for uma mulher gostosa de 26 anos  — e também deve ser permitido escrever sobre outros artistas que não sejam. Acatei a dica dele e aqui estou, tão feliz quanto a Rosalía fazendo o trabalho dela, escrevendo sobre essa gênia do incômodo.

Enquanto um bando de gente faz muita força para achar defeitos em Rosalía, outra multidão encontra na artista a inspiração necessária para seguir os próprios sonhos, acreditar em autenticidade, ignorar críticas destrutivas e fazer tudo isso sem esquecer de se divertir. Sabendo que nem a Madonna se chateou com ela, você já pode escolher seu lado.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.