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Luiza Sahd

Aos olhos de muitos estrangeiros, brasileiros são “acumuladores de amigos”

Luiza Sahd

22/10/2019 04h00

Amizade é compromisso? Depende dos olhos de quem vê. (Ilustração: YeahYeahChloe)

 

Morar fora do nosso país de origem consiste basicamente em fazer concessões em relação a tudo a que estamos acostumados (e mantendo sempre uma cara boa, para não ofender os anfitriões). Estar aberto a novas formas de se relacionar com tudo — a cidade, a comida, o clima, a etiqueta e as pessoas — é a missão número um do imigrante que não quer frustrar ou ser frustrado pelos indivíduos com quem passa a conviver longe de casa.

Muita gente pergunta se sinto saudades do Brasil quando estou na Espanha. A resposta honesta seria "todos os dias, em horários variados", mas é muito chato explicar o motivo: na Europa, de modo geral, as pessoas se tratam de uma forma muito diferente da maneira como os brasileiros se tratam. Se você acha que vou contar alguma coisa sobre civilidade, errou.

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No Brasil, fazer amigos é relativamente simples: um amigo de amigos é apresentado à sua turma — pode ser num aniversário, numa viagem, no almoço da firma ou na mesa do bar — e, em poucas semanas, é natural e provável que ele seja incorporado como mais um "membro" daquele grupo. Isso não quer dizer que, da noite para o dia, ele vá se tornar seu amigo íntimo… mas, se acontecesse, nenhum compatriota ficaria surpreso.

Os brasileiros, de modo geral, são pouco desconfiados de estranhos. A gente conhece uma pessoa na balada e, quando vê, já foi parar em um churrasco na casa dela na semana seguinte. Aqui em Madrid, já ofereci pouso para sabe-se lá quantos conhecidos com quem mal convivi em São Paulo. Na Espanha, onde moro há quase cinco anos, nunca fui chamada para nenhum churrasco que não fosse oferecido por algum imigrante como eu. Pedir pouso na casa de um espanhol semi-conhecido, então, seria uma completa piada.

Em Madrid, os grupos de amigos são relativamente pequenos e muito restritos. A coisa mais comum por aqui é que meia dúzia de pessoas — que se conhecem desde a escola — façam absolutamente todos os programas juntos: vão a bares, festas, fazem viagens e praticam esportes com os mesmíssimos seis amigos de sempre. Como essas relações não se desgastam ao longo de tantas décadas de convivência intensa é que, na minha brasilidade, não consigo entender. Eu não aguentaria fazer todos os programas da minha vida com as mesmas seis ou dez pessoas nem se elas fossem minhas irmãs de sangue.

Voltando aos espanhóis, conheci, recentemente, dois deles que moraram no Brasil por mais de cinco anos. De uma forma muito polida, eles me explicaram que os brasileiros podem ser meio "levianos" nas amizades: não é sempre que telefonam ou visitam os amigos, não são pau pra toda obra, somem e aparecem com uma frequência estranha para os padrões espanhóis. Lembrei de todas as amizades que não consolidei na Espanha e respirei aliviada pensando "não sou doida ou chata, sou só brasileira mesmo".

Outro dia, uma amiga minha (dessas antigas, mas com quem converso umas cinco vezes ao ano, se tanto) me contou que, morando em Londres, foi desafiada por um inglês que não aceitava o fato de ela ter "melhores amigos demais". O rapaz afirmou que ter intimidade com tanta gente seria humanamente impossível e perguntou se ela conseguiria hierarquizar o grau de amizade que mantém com cada um de seus 20 melhores amigos, organizando do mais para o menos íntimo. A "gincana" foi uma missão impossível para ela; seria uma missão impossível para mim também — que certamente tenho uns 20 melhores amigos e colocaria todos mais ou menos empatados no grau de intimidade. Que tipo de desafio é esse?

Para quem não é brasileiro, a impressão de que somos levianos ou acumuladores de pessoas pode ser bem comum. Se tivesse que escolher, eu trocaria facilmente seis amigos fiéis-escudeiros por seis turmas com quem eu tivesse a oportunidade de conviver prazerosamente, sem a obrigação de saber todos os detalhes da vida delas ou de participar tudo o que acontece na minha vida.

A amizade é só um dos muitos assuntos intrigantes para quem vive a um oceano de distância da própria casa, mas poucas coisas impactam tanto o bem-estar de um imigrante quanto a qualidade (e, quem sabe, a quantidade) de amigos para compartilhar uma vida longe de familiares, em que tudo é meio estranho — inclusive você para os nativos.

Acumuladores ou levianos, é impossível negar que, como nenhum outro povo, os brasileiros se permitem cativar e serem cativados por desconhecidos. A gente poderia teorizar aqui sobre quanto essa nossa característica tem a ver com a herança colonial, com o famigerado complexo de vira-latas ou com o nosso descompromisso crônico, mas ter a vida permeada por uma multidão de amigos (antigos, recentes, sazonais ou sumidos) é bem mais divertido do que problematizar uma das coisas mais gostosas da vida: a amizade.

A vida deve ser mesmo a arte do encontro, mas os gringos ainda não foram adequadamente informados sobre essa questão.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.