Espanha: na Galícia, todo mundo pode ser Rei do Camarote

Mas não se iluda: precisei sair desta praia escalando por uma corda e tenho dor nas pernas até agora. (Estaca de Bares/ Foto: iStock)
Com alguma frequência, tenho vontade de me esconder da psicóloga que me assiste nos últimos sete anos. Imagino que ela possa sentir o mesmo e, talvez por isso, me ensinou recentemente um exercício para praticar diariamente.
– Luiza, sempre que você sentir ansiedade, pergunte-se "O que eu quero?". Quando tiver a resposta, pergunte-se "O que eu preciso?". Você vai notar muita diferença entre as duas coisas.
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Pratico essa desgrama de vez em quando e funciona mesmo. Eu fico puta das calças. É muito ruim não desejar só o que a gente precisa realmente, mas me consolo notando que pouca gente tem toda essa habilidade. Foi assim que aceitei um convite de amigos para ir à Galícia: calhou de eu querer e precisar sair da bolha de calor seco que inviabiliza qualquer noite bem dormida em Madrid durante agosto.
Quando você viaja até a ponta de um continente e olha o horizonte, fica meio confuso da cabeça mesmo. Particularmente, passei dias tentando imaginar se o pessoal antigo acreditava que o mundo terminava ali. Por mim, o mundo podia mesmo terminar naquele naco de terra da praia: diferente do que acontece na capital, o verde abunda (e lembra muito o Brasil), as comunidades ainda são muito ligadas a atividades agrícolas e qualquer pedacinho de chão parece adequado para o pasto. Sinceramente, invejei as vacas galegas. Algumas delas pareciam estar vivendo melhor do que eu na cidade.
Minha estadia foi em uma casa bonita com uma família mais bonita ainda. Lá tinha tudo o que precisávamos, mas não notei nenhum excesso de decoração ou bens — a não ser na horta. Aparentemente, a Galícia tem a terra mais "sem miséria" do mundo, então um canteiro de uns 30 m² tinha tomate, acelga, cenoura, couve, alface, kiwi, cebolinha, pimentão, uva (!) e sei lá mais quantos legumes abundantes entre flores meramente decorativas. Apontei para um ramalhete e perguntei à anfitriã, Dora, o nome de uma flor meio diferentona à esquerda. Ela respondeu que era alho, rindo do meu excesso de urbanidade.
Senhoras e senhores, o alho dá flor mesmo e posso provar:
Desse momento em diante, tudo o que fiz na Galícia foi notar meu ridículo grau de desconexão com a natureza e sentir admiração pelo luxo que só a simplicidade pode oferecer. A região é composta por pequenos povoados (pueblos) quase sempre singelos, com mar azulzinho, escondido às vezes pela neblina — o que não compromete em nada a paisagem. As hortênsias brotam aos montes em lugares aleatórios, as casas todas parecem ter espaços para o que os habitantes plantem o que quiserem, de forma que faltou "isso aqui" para eu atualizar a carta de Pero Vaz de Caminha falando dessa zona espanhola.
Quando você está em uma das cidadezinhas com muito menos habitantes do que o Acre, pode achar que o tédio vai te matar. Aí você descobre eventos como a Festa do Ovo Frito, a Festa do Percebe (o crustáceo mais viscoso e gostoso que já provei) ou a Festa da Queimada (como se fosse um quentão de aguardente com orujo, cozido em uma panela) e bota fé que aquilo ali pode ser mais divertido ou alucinógeno do que qualquer rave de jovens, com a diferença de que se gasta quase nada para sorrir. Tudo na região é barato e gostoso em níveis contundentes. Fora isso, você se surpreenderia em descobrir como o pessoal mais velho é mais divertido e bem-disposto do que nossos amigos de 30 e poucos. Cada geração tem mesmo o que merece.
Acabou? Não. Tem mais. Nosso idioma não vem simplesmente de Portugal. Essa região da Galícia foi o berço do galego-português, e é preciso um volume extra de maturidade para ler placas com palavras como "URXÊNCIAS", "AXUDA" ou "HOMENAXEM" sem rir um pouquinho. Por lá, homens podem chamar Xúlio ou Xoão; minha profissão é a de Xornalista. Sigo me reprimindo um pouco por achar tudo tão mais divertido na língua do xis.
Do que se pode ver e viver na Galícia, a única coisa que me deixou triste foi a forma como as fazendas de eucalipto vêm tomando o lugar da vegetação autóctone. Ainda assim, é impressionante como uma das regiões mais pobres da Espanha dá um banho nas "ricas" quando o quesito é bem-estar. Prova disso é o volume de vizinhos meus que "se mudam" para lá durante agosto. O pessoal volta corado, calmo, feliz — e eu não entendia por quê.
Enquanto retomo na capital minha rotina de excessos (de consumo, de estresse, de concreto, de gorduras saturadas e de desconfiança com o próximo), me pergunto por que a gente vive soterrado de pertences que não preenchem nosso vazio quando estamos em grandes centros urbanos. Deve ser a poluição que prejudica o raciocínio, não é possível.
Precisamos de um monte de coisas até descobrir a simplicidade. Quem é esperto não quer ter a grama mais verde do que a do vizinho: prefere ter grama boa por onde quer que ande. Por isso mesmo, na Galícia, todo mundo parece ser VIP o suficiente para aproveitar a abundância. Nem em camarote afrescalhado da Sapucaí fui tão mimada, sinceramente.
Se eu sumir algum dia, procurem por lá antes de acionar as autoridades.
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