Relacionamento difícil? Experimente brigar caminhando
Luiza Sahd
16/11/2017 08h26
Se tem algo que Aristóteles e Sócrates não eram, essa coisa é bobos. Dois dos fundadores da filosofia ocidental usavam o mesmo approach com os discípulos: eles davam aulas caminhando. E não sendo bobos, durante as caminhadas, esse pessoal chegou a conclusões fundamentais sobre o mundo, a física e a metafísica.
A Escola Peripatética, cujo nome vem das expressões para 'ambulante' e 'itinerante' no grego clássico, sempre me pareceu intrigante. "Para onde vai o foco se você tenta aprender alguma coisa enquanto anda por aí? Passa um conhecido puxando assunto e adeus, linha de raciocínio?", me perguntei algum dia.
Corta para 2007. Faculdade, tempos difíceis. Muita vontade de viver e pouco dinheiro para isso. Eu namorava um colega na mesma situação. A gente se gostava & brigava demais. Comecei a desconfiar que tanta animosidade tinha algo a ver com a energia acumulada ao ficar em casa comendo nuggets e assistindo filme cult pirateado; tive certeza disso quando tivemos uma briga… caminhando.
Foi de sopetão e não lembro bem se a discussão começou em casa e alguém teve a brilhante ideia de continuar o assunto no trajeto para a aula, mas o que importa é que, caminhando uns quilômetros, resolvemos problemas acumulados em sabe-se lá quantos meses. Se eu fosse sommelier de briga, classificaria essa como uma briga gourmet.
Ficamos tão fascinados com a briga itinerante que decidimos sair para caminhar toda vez que precisássemos ter conversas tensas. Funcionava demais. O amor não durou para sempre, mas o respeito, até que sim.
Inconscientemente, acabei aplicando o golpe da briga peripatética em diversos momentos e nos mais variados tipos de relacionamentos da vida. Nunca falha! Eu gostaria que a gente pudesse usá-lo mais, inclusive em reuniões de trabalho ou ocasiões como ceia de natal, mas ficaria esquisito os parentes tudo dando volta em volta do peru enquanto discute as eleições 2018.
Enfim. Isso aqui é meio truque baixo, mas se Sócrates pode, a gente também pode. É muito difícil que uma conversa termine em briga durante uma longa caminhada por diversos motivos:
– Sempre tem gente em volta. Pega mal se exaltar;
– Não precisa olhar nos olhos o tempo todo. Olhar nos olhos é um obstáculo quando precisamos dizer coisas difíceis;
– Quando dizemos coisas difíceis, um tempo de silêncio andando é mil vezes menos pesado do que o silêncio estático de duas pessoas se encarando;
– Se a coisa começa a ficar feia, tem que esperar um semáforo abrir ou dar passagem pra um velhinho, desconcentra tudo;
– Os envolvidos estão produzindo endorfinas. Ninguém tem condições de sentir ódio plenamente quando está produzindo endorfina. Seria como se sentir triste com um sundae de chocolate na boca. Apenas não dá;
– Quando a coisa começa a ficar feia de novo, tem que avisar o interlocutor pra tomar cuidado com o cocô na calçada. Olha aí a prova de amor ao invés de treta!
Em verdade, vos digo: não é à toa que o pessoal volta daquela peregrinação em Santiago da Compostela dizendo que foi iluminado. OS CARAS ANDAM CENTENAS DE QUILÔMETROS. E o Paulo Coelho, então? Fez o trajeto e, na volta, conseguiu até ficar milionário com renda proveniente de literatura. Se isso aí não for milagre, não sei o que pode ser.
O golpe da treta ambulante nasceu uns 500 anos antes de Cristo, mas continua funcionando. Usando sem moderação, a gente ainda fica com o bumbum todo bom.
Sobre a autora
Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.
Sobre o blog
Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.