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Elena Ferrante e a mecânica da crocodilagem

Luiza Sahd

12/07/2017 12h45

crocodilagem
substantivo feminino infrm. pej.
ato ou efeito de trair, enganar; traição.

Capa de A amiga genial, de Elena Ferrante.

Ninguém precisa ler a tetralogia napolitana da Elena Ferrante para saber que história de amigo puxando o tapete do outro deve existir na nossa literatura desde antes das Cantigas de amor, amigo, escárnio ou maldizer. Taí um grande tema universal.

Se a ideia for entender melhor como funciona essa mecânica, minha sugestão é: faça o sinal da cruz, comece a ler "A amiga genial" e boa sorte para conseguir dar conta de qualquer outra atividade que não varie entre andar com o livro para cima e para baixo e sentir agonia com os rumos que a série vai tomando.

Para quem ainda não leu os livros, já aviso que esse post tá cheio de spoiler.

Acontece que a narradora do livro (Lenu) repassa sessenta anos de amizade com Lila, que conheceu ainda na escola, em Nápoles. Durante todo esse tempo, Lila falhou em muitas coisas na vida, menos na função de ser traíra com Lenu: escondeu a boneca favorita da coitada por décadas, sempre falou coisas que não deveria, omitiu outras que tinha que ter contado, competiu na paquera, engatou casamento com o crush da Lenu, usou a amiga como álibi para mentiras cabeludas, fazia ela se sentir feia, careta e inadequada entre outras barbaridades.

Ter pena da Lenu é quase inevitável, é humano, mas injusto. Todo mundo já teve uma "amiga genial", mas Lilas só existem quando as Lenus dão mole. Aliás, Jorge Ben deu a palavra definitiva sobre essa questão em Engenho de Dentro.

"O Tyrannosaurus rex
Mandou avisar
Que pra acabar
Com a malandragem
Tem que prender
E comer todos os otários"

Lamentavelmente, estou de acordo.


Voltando à Ferrante, o livro é fascinante por uma infinidade de aspectos, mas sobretudo por fazer a gente chegar a torcer por uma amizade tão cagada. "Gente, já são 30 anos disso. Se uma sumir da vida da outra, aí que a coisa pode desandar de vez", cheguei a me flagrar pensando.

Por que a Lenu nunca foi assertiva com a Lila quando ela se colocava em posição de competição com a melhor amiga deliberadamente? Porque ela sabia que a Lila também se sentia intimidada por ela. Olha o nível de elaboração que a neurose humana atinge sob máscara de inocência! Essa história toda é um grande "bom, se a Lila compete tanto comigo, é porque estou a altura dela, que honra!" e vice-versa.

E vai achando que isso só acontece em amizade feminina, vai. Ano passado, conheci um "amigo genial" que estava em um casamento extremamente frustrante e a especialidade dele virou jogar areia nos relacionamentos dos colegas. Cheguei a saber que o cara propôs a um deles que se separasse para dividirem um apê, porque namoro é tudo um horror mesmo.

Será que ele estava procurando um amigo-irmão ou fiador? Difícil cravar, mas, mole,mole, ele conseguiu converter uns três homens da mesma turma a comprarem briga com as cônjuges.

O problema das amizades geniais é que você não consegue escapar de se sentir Lenu, Lila ou alternar entre as duas. A gente julga demais, vacila demais e se mede demais pela régua das pessoas que admiramos.

Confesso que também tenho uma amiga genial. E eu amo essa amizade com loucura, tanta que não tenho ideia do que fazer com ela. Talvez um bom começo seja descobrir o que fazer comigo mesma para que os outros não façam o que quiserem.

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Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.