Elizabeth Bishop, Guimarães Rosa, Raul Seixas: vale a pena cancelar mortos?
O anúncio de que a escritora norte-americana Elizabeth Bishop seria a homenageada da Flip 2020 provocou discussões acaloradas sobre a escolha inédita de uma autora estrangeira — e simpatizante do golpe militar de 1964 — para um evento tão simbólico. Os protestos têm lógica: justamente no momento em que temos que lidar com o filho do presidente da República e com o ministro da Economia especulando sobre um novo AI-5, a escolha de Bishop como homenageada não parece uma boa ideia.
Nesse cenário, é bem legítimo discutir que outros autores poderiam representar não só a cultura brasileira, mas também a importância da manutenção das nossas liberdades: de expressão, artísticas e individuais. O que não parece muito legítimo, entretanto, é desmerecer toda a obra de uma artista que já não tem oportunidade de se desculpar, ver como o mundo mudou ou, quem sabe, mudar de ideia sobre questões tão sérias como intervenções militares em países democráticos.
Em sua obra, Bishop não se dedicou a elogiar a ditadura ou praticar crimes contra a humanidade — como Guimarães Rosa também não se dedicou, apesar de ter mantido relações estreitas com ditadores durante o golpe. Seria complicado aplicar a cultura do cancelamento em alguém tão relevante para a nossa cultura como Guimarães Rosa, assim como faz pouco sentido "cancelar" a obra de Elizabeth Bishop por causa de suas convicções políticas em 1964. O mundo deu voltas demais desde então e ela não pôde acompanhar boa parte delas porque morreu em 1979.
Em algum sentido, a cultura do cancelamento pode render discussões mais produtivas: quando estamos falando de uma figura pública que ainda está viva (como Anitta, que é provavelmente a pessoa mais cancelada do Brasil nesse momento), ainda existe a possibilidade de que ela responda de onde tirou suas ideias — ou por que prefere não se posicionar sobre assuntos espinhosos. Quando criticamos alguém que viveu e morreu em outra época, o cancelamento deixa de ser uma discussão e passa imediatamente para a categoria "punhetagem mental".
Ainda neste ano da graça de 2019, testemunhamos o cancelamento de Raul Seixas na internet. Motivo: ele teria traído o então amigo e parceiro musical Paulo Coelho, entregando-o para o Dops durante a ditadura. O próprio Paulo Coelho veio à público dizer que a discussão não valia a pena depois de quase meio século de história e com Raul Seixas morto há tanto tempo, mas a internet parece gostar da polêmica pela polêmica.
Se tudo der certo do ponto de vista social e cognitivo, é provável que nenhum de nós pense como pensamos hoje sobre assuntos políticos daqui a algumas décadas. Nada é mais natural e esperado do que testemunhar a história e ver que tiramos conclusões erradas por ignorância, ingenuidade ou por simples preguiça de escutar pessoas de outros lados em debates públicos. A parcimônia nunca esteve muito na moda, mas ela parece especialmente fora de moda nesta década.
Pensando pelo lado bom, a polêmica provocada pela escolha de Bishop como homenageada da Flip pode culminar com um maior interesse do público pela programação do festival. O diretor-geral do evento, Mauro Munhoz, já declarou em entrevista que ainda há tempo para acompanhar e avaliar com calma se vale a pena manter ou trocar a autora escolhida para ser a estrela da festa.
Com sorte e um pouco de discernimento, teremos mais leitores curiosos pela obra de Bishop ou do autor que venha a receber destaque no festa de 2020. Boicotar a Flip seria, no final das contas, jogar o jogo de quem despreza iniciativas culturais — esse pessoal que ama a ditadura de forma muito mais apaixonada do que Bishop, Rosa ou Raul jamais amaram.
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