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Luiza Sahd

Importa mesmo o que a manifestante agredida por três homens tinha nas mãos?

Luiza Sahd

08/04/2019 19h05

Foto: Reprodução/ Jardiel Carvalho (Folhapress)

No último domingo (7), um confronto entre manifestantes que celebravam o aniversário da prisão do ex-presidente Lula e os que lamentavam a data terminou com este tipo de confronto:

Nas imagens gravadas, parece bem nítido que a manifestante pró-Lula não entra em luta corporal com ninguém e, no entanto, recebe um mata-leão de um homem bastante mais corpulento do que ela enquanto outros dois ajudam a encurralar a mulher. O desfecho, inacreditavelmente, é a vítima de uma violência testemunhada pela PM sair do local algemada.

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Nas redes sociais, algumas pessoas insinuaram que a moça agredida estaria portando uma barra de ferro — e que poderia ter ameaçado o grupo que apoiava a Lava Jato na Paulista. Observando detalhes da foto e revendo o vídeo, também é possível inferir que o que havia na mão da vítima era uma haste de bandeira, como a que o senhor atrás dela também carregava.

Antes de discutir se era uma haste de bandeirinha ou uma barra de ferro nas mãos desta mulher esmagada entre três marmanjos, permitam-me contar sobre uma das coisas mais assustadoras que já me aconteceram.

Em 2016, eu estava voltando sozinha de uma festa e parei para comer em um Mc Donalds 24h muito movimentado, em Madrid. Quando estava na fila, o grupo de jovens da minha frente começou uma luta física bem perigosa, inclusive porque estávamos em um corredor com "paredes" de vidro.

Vi um rapaz próximo à porta saindo para chamar uma viatura enquanto morria de medo que o vidro estraçalhasse em nossas cabeças. Meu reflexo (talvez meio idiota e meio jornalístico) foi filmar a confusão discretamente para, quem sabe, colaborar com a polícia em um momento oportuno. Acontece que uma garota envolvida na pancadaria notou que estava sendo filmada.

Ela me empurrou. Retribuí o empurrão e esse foi o último movimento que pude fazer antes de ser imbolilizada por três colegas da garota — que me arrastou, pelos cabelos, para fora do restaurante.

Enquanto era arrastada de cabeça baixa por quatro pessoas, vi uma garrafa de vidro no chão e tentei usá-la para me desvencilhar dos agressores. Àquela altura dos acontecimentos, eu só queria evitar meu linchamento. De novo, fui contida pelos três rapazes que acompanhavam a garota. Um cara tirou a garrafa das minhas mãos, quebrou o casco e me ameaçou com vidro afiado na jugular. Definitivamente, tentar me defender com uma garrafa de vidro não foi uma boa ideia, mas a gente costuma contabilizar más ideias só depois que elas falham.

Enquanto eu tinha cacos apontados para o pescoço e outros dois marmanjos me seguravam pelos braços, a moça me batia sucessivamente na cara. Foi quando a viatura finalmente chegou e mandou todo mundo encostar em um muro.

Nesse momento, tentei contar minha versão, mas os policiais — possivelmente notando meu sotaque diferenciado — exigiram silêncio. Eles me fizeram uma única pergunta antes de liberar os agressores impunemente: "você teve algum pertence roubado?". Quando respondi que não fui roubada, o pessoal que me espancou foi para casa tranquilamente, caminhando.

Haviam pelo menos cinco testemunhas falando a meu favor no local, mas os oficiais da polícia estavam "sem tempo, irmão". O restaurante também recusou minha solicitação das imagens do circuito interno de câmeras para anexar em um processo judicial. Esse é o desfecho mais comum para gestos de covardia quando a covardia é institucionalizada.

Se a manifestante que foi encurralada por três homens na Avenida Paulista tivesse mesmo uma barra de ferro nas mãos (como eu tive uma garrafa nas minhas), o desfecho mais provável para ela também seria apanhar com a própria arma que empunhou. O mais intrigante no caso desta moça é que não apareceu um cristão dizendo que ela agrediu alguém antes de ser agredida, e as imagens comprovam que ela foi agredida. Se a luta física se deu por conta de discordância ideológica, a atitude dos agressores deveria ser considerada ainda mais abjeta.

O que aconteceu na Avenida Paulista me trouxe de novo a melancolia e a frustração que só entende quem experimenta a violência institucional na própria pele. Temos provas materiais de que uma mulher foi agredida e algemada, mas não faltam vozes gritando "viva a PM" ou tentando dizer, sem ficar com o rosto corado, que ela oferecia risco a alguém.

Por mais lucidez que a gente tente cultivar em uma era extremamente violenta, fica até difícil torcer para que os entusiastas da covardia não se tornem vítimas do monstro que estão alimentando.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.