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Luiza Sahd

O que uma mulher pode aprender na mesa de bilhar?

Luiza Sahd

30/12/2018 05h00

Foto: Getty Image

Verdade seja dita: se bilhar não fosse um jogo absolutamente fálico, a gente não passaria a vida rindo de piada besta com "taco", "bola", "caçapa" e palavras desse campo semântico. O bilhar é, antes de tudo, uma grande alegoria para o sexo. Importante a gente admitir.

Dito isso, gostaria de saber: quantas das suas amigas curtem muito uma jogatina de bilhar? A gente supõe que existe muita mulher jogando, mas sempre vejo poucas nas mesas. Por um acidente de percurso, me tornei uma delas. Desde então, aprendo na base de umas mil lições por noite.

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Tudo começou no último ano, quando entendi direito as regras do jogo e lembrei que amo jogos de todos os tipos. Nada mais natural do que eu querer praticar o que estava aprendendo, certo? Errado. Muitos caras podem estranhar demais a presença de uma mina ali.

Como sabemos, as mesas de bilhar estão disponíveis geralmente em bares imundos, frequentados majoritariamente por caras tão impolidos quanto a decoração. Aqui, estamos falando do apreço por asseio, mesmo. O bilhar, aparentemente, é mais do que um esporte de mesa: via de regra, ele é símbolo daquele orgulho heterossexual rústico que levou alguns caras lavarem mal suas bundas em 2017. Enfim. 

Tentando não pensar muito em estereótipos e etiquetas que já não têm nada a ver com a vida moderna em uma capital europeia como Madri, passei a entrar em filas para jogos de bilhar em bares variados da cidade. A primeira reação dos caras quando me veem de taco na mão é sempre desconfiança.

Na fila do bilhar, lido geralmente com três expectativas básicas dos caras sobre mim:

1- "Ela quer se exibir pra gente"

2- "Ela não está se exibindo. Deve ser lésbica "
3- "Ela é só burra mesmo"

Nenhuma delas é verdadeira. Do começo ao fim das partidas, minha intenção é a de melhorar uma habilidade que não domino (e me divertir, porque também mereço). Enquanto isso, o semblante dos adversários derrete um pouco mais a cada jogada torta que executo, como se eu estivesse profanando algo sagrado e atrapalhando toda uma dinâmica de competição exclusivamente masculina.

Durante os jogos, tento observar como segurar o taco, onde mirar o golpe, como inclinar o corpo e quanta força colocar em cada jogada, mas ser mulher e entrar em uma mesa de bilhar deve ser a coisa mais próxima da experiência de psicose para não psicóticas: bastam dois segundos analisando as bolas para você começar a ouvir uma dezena de vozes na sua cabeça. São alucinações? Não. São homens dizendo que você vai jogar mal.

No começo, eu ficava triste por ser meio atrapalhada. Depois, notei que os caras faziam poses melhores do que as minhas para, no fim das contas, cometer os mesmos erros durante o jogo. Por último, passei a entrar na fila do bilhar para curtir a partida em si e me divertir o dobro com as reações dos colegas à presença feminina no ambiente.

Ser mulher e fazer cara de quem não está entendendo as instruções dos rapazes é o disfarce perfeito em uma partida de bilhar. Enquanto muita gente pode suspeitar que fui lá para ser observada, fico observando como eles enchem as competições de significados relacionados a virilidade, como eles lidam com suas vaidades, como esse espaço parece importante para eles se exibirem e fazerem uma espécie de culto à testosterona.

Sempre que entro em uma partida de bilhar com desconhecidos, tento aproveitar o tempo para aprender bobagens como o melhor manuseio de taco, bola, caçapa, essas coisas. No fim, acabo aprendendo pouco ou quase nada sobre a mecânica do jogo e muito sobre a mecânica humana.

É quase impossível que uma mulher não saia de uma mesa de bilhar melhor do que entrou. Durante o jogo, ela pode pensar sobre a diferença entre o que se espera dela e o que ela realmente é, sobre a liberdade de não precisar ser boa em tudo o que faz, sobre a ousadia de não obedecer um monte de homem — e fazer as coisas do jeito dela. Ela pode inclusive não pensar em nada disso e apenas brincar enquanto a multidão enfurecida leva as mãos à cabeça porque ela encaçapou a bola branca pela segunda vez na mesma partida. As possibilidades são infinitas.

No bilhar e na vida, nossa única expectativa deveria ser errar cada vez melhor.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.