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Luiza Sahd

Será que fazemos bom uso da cordialidade brasileira?

Luiza Sahd

13/10/2018 12h41

 

Acabo de viver uma situação chocante no Rio de Janeiro. Não era assalto, não era treta, não era irregularidade. Talvez por isso mesmo tenha me parecido tão forte. Desde que o mundo é mundo, paulista anda no Rio com medo de tudo. O que ele nunca espera é o mais óbvio: os muleque são dengoso [sic].

Hospedada na casa de uma amiga, desci para fazer a cópia das chaves. Acontece que era feriado e, não sabendo bem o que poderia estar fechado, achei melhor pedir a opinião de alguém do bairro. Fiz uma simples pergunta à senhora que trabalhava em uma banca de jornais: "Você sabe se há algum chaveiro aberto hoje por aqui?". Ah, pronto.

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Imediatamente, a cliente que estava na banca conversando com a dona tentou entender melhor qual era a minha necessidade e a urgência da situação. Expliquei que era próxima de zero, já que tudo o que eu queria era não incomodar minha anfitriã nas entradas e saídas de casa. Logo, um garçom do restaurante ao lado opinou que estariam todos fechados. Ato contínuo, a dona da banca passou a mão no celular e ligou para não-sei-quem perguntando se haviam chaveiros abertos no bairro. "Olha, tem o Lucas. Ao final dessa quadra, dobre à direita e fale com o Lucas. Tá vendo ali? Fica bem ali, depois do farol". Agradeci por toda a ajuda e prometi voltar ao restaurante para almoçar.

O Lucas estava fechado e me conformei com a perspectiva banal de só copiar as chaves no dia seguinte. Sabe quem não se conformou? Nenhum dos envolvidos. Quando voltei, a dona da banca disse que eu poderia telefonar para ele, mas que eventualmente o serviço sairia mais caro. Agradeci de novo, disse que não precisava tanto e sentei para almoçar. Minutos depois, o garçom volta da banda de bicicleta que empreendeu para voltar me contando que havia um chaveiro "do outro lado do canal, se você quiser, passo lá de bike e te trago".

Não sei em que momento a pergunta sobre os estabelecimentos do bairro foi capaz de gerar tamanho engajamento por parte de estranhos, mas uma coisa eu posso afirmar com segurança: isso só aconteceria no Brasil. Se tem um povo que adora colaborar com o outro, somos nós.

Tudo isso seria lindo se fosse um mecanismo 100% espontâneo, mas algo me diz que fomos educados para ter muita cordialidade com indivíduos e pouca com os nossos rumos coletivos. A vida no Brasil sempre foi um salve-se quem puder — e deve ser por isso mesmo que tentamos defender a "nossa galera" de qualquer mal, mesmo que não tenhamos a mesma nobreza quando lidamos com o bem da maioria, sem priorizar necessidades individuais.

Foi esquisito contrastar a comoção em torno do chaveiro com o pouco caso que estamos fazendo um dos outros em meio às eleições mais polêmicas da nossa história recente. Por aqui, todo mundo tem se odiado por discordar dessa noção do que é "bom para todos".

O que não deveríamos esquecer é que em algum lugar do coração de todo brasileiro, existe um know-how de cooperação. Muito chato que a gente não nasça com algum botão, algum mecanismo para ligar o modo solidariedade na hora certa. De todas as formas, ele está ali e isso importa mais do que nunca.

Ainda dá tempo de olhar para o lado e ver que nenhuma nação saudável nasceu de uma política de tiro, porrada e bomba. Quanto mais seguro é um país, menos hostilidade você encontra na história desse lugar.

A cordialidade brasileira ainda é toda controversa, mas não deixa de ser um dado e, com sorte, um tesouro a ser lapidado. Olhando bem, poucos compatriotas não dominam a arte de dar as mãos inclusive para estranhos; infelizmente, quase nenhum está confiante no valor dessa nossa sabedoria ancestral.

Caso haja um novo "salve-se quem puder" na nossa história, ainda é um conforto saber que sempre teremos uns aos outros. Mas tomara que a gente descubra, antes, uma salvação coletiva. Quem sabe seguindo bons exemplos, quem sabe apenas não seguindo o que não é a nossa vocação.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.