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Luiza Sahd

Precisamos parar de repetir 'no meu tempo era assim'

Luiza Sahd

17/07/2018 05h00

Foto: Reprodução/ Hermes e Renato Oficial

Minha mãe é moderna como poucas pessoas. Ela acha que não é, nunca tive coragem de contar que sim e seguimos fingindo que "nossa, nada a ver isso aí que você tá falando". Acho que não há risco de que ela descubra a verdade lendo este texto porque não anda prestigiando o blog aqui como deveria. Prova disso é que ela passou o link do blog para uma nova amizade sem saber que meu último post era sobre sexo.

Quando ela contou o incidente, avisei, aos risos, do que se tratava o post da semana passada. "Não acredito, Luiza. Que mico! Vou até preparar meu coração de mãe antes de ler porque sei que você gosta de chocar as pessoas, né?", respondeu ela, também aos risos.

É evidente que a interação virou uma grande conversa em torno da fogueira sobre a vida, o universo e tudo mais, como sempre acaba acontecendo. Pode parecer maravilhoso e é mesmo em parte dos casos — menos quando minha mãe fica com encosto de palestrante do TED Talks.

Apesar de moderna, ela ainda é mãe e poucas mães sabem configurar gadgets (bom, nem tenho filho e também não sei fazer isso, daí você já tira). Então, quando a mãe engata uma primeira falando, desembestada, o microfone do celular dela desativa a recepção da minha voz do lado de lá, de modo que qualquer tentativa minha no sentido de interromper a fala dela é vã: a mãe só vai conseguir escutar minha voz se fizer silêncio absoluto superior a dois segundos. Quando ela começa com o TED Talks e discordo de tudo mas não consigo intervir, confesso que coloco a chamada em viva-voz, começo a faxinar a casa e continuo escutando como se fosse rádio, até ela terminar. Você não discute com um locutor de rádio em sã consciência, então essa abstração do rádio facilita muito mesmo o nosso relacionamento.

Graças à limitação tecnológica do aparelho que nos obriga a esperar a uma terminar de falar para a outra responder, pude escutar realmente minha mãe mandar uma frase assim "(…) No meu tempo, era diferente. Aliás, 'no meu tempo' não, porque hoje, agora, também é meu tempo. Mas quando eu tinha a sua idade, (…)".

É o tipo de frase que me deixa olhando pro teto do quarto, atordoada, durante semanas. Nem prestei atenção resto. Desculpa, mãe! Deu tempo só de esclarecer a ela que não gosto de chocar as pessoas: gosto é de agir como se certas coisas que deveriam ser normais não fossem chocantes. Ela entendeu e gostou, obviamente, porque é moderna. Mas fica entre nós, aqui.

Com um simples "hoje também é meu tempo", a mãe conseguiu curar um bode meu de toda a vida. Sempre quis matar quando alguém vinha tentar me convencer de qualquer coisa com o argumento "não, porque no meeeeeu teeeeempo…". Sai fora. Vontade de responder "O mundo é assim agora e não vai voltar atrás. Você vai ficar lá ou aqui?".

O que deve acontecer tantas vezes e, meu Deus, não fui capaz de enxergar! — é a gente achar que está velho, obsoleto, que não entende mais nada. Tenho 33 anos e já me peguei falando pra uma turminha de adolescentes "no meeeeeu teeeeempo…".

Agora, vem aqui. E se a gente pensasse um pouquinho melhor sobre qual é o nosso tempo? Dá a sensação, como bem disse Regina Casé a respeito, de que a vida é divida assim:

Crianças: adultos que ainda não chegaram lá
Adultos: gente que está sendo realmente o que é
Idosos: ex-adultos que já não podem vir a serem nada

Não sei vocês, mas não pretendo aceitar isso aí sem protestar. Confio na vida, no futuro e na ciência. Se tudo sair nos conformes, ainda planejo viver mais uns 60 anos e não quero que seja fazendo crochê, sem entender meu entorno ou socialmente isolada. O pessoal vai ter que me tolerar de cabelo rosa — com a saúde e a lucidez que ainda restarem, já que sou tabagista viciada em fritura.

Certo estava o Zagallo quando avisou que o pessoal teria que engoli-lo em 1997. Claramente, aquele tempo ainda era dele, aos 75 anos de idade. Que beleza, destemperos a parte. Não é fácil permanecer vivo durante uma vida inteira.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.