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Luiza Sahd

Médicos sabem mesmo lidar com pacientes 2.0?

Luiza Sahd

26/04/2018 04h00

Getty Images

 

Envelhecer não é bolinho. Passar dos trinta anos não significa necessariamente envelhecimento mental, mas é sempre bom se preparar para o pior no plano físico. Diferente do que acontece quando a gente tem vinte e poucos, aos trinta, o corpo começa a revidar todos os coices que a gente dá nele.

Foi assim que me tornei uma espécie de "paciente do mês" (estilo funcionário do mês no McDonald's) do hospital perto de casa. Não tinha me dado conta de que não sou feita de aço e acabei convivendo mais do que gostaria com equipes médicas no último semestre.

Agora que fiquei esperta, sinto um monte de gratidão por boa parte dos médicos. Passei a cuidar melhor de sono e alimentação, aumentei trajetos de caminhada e todas essas coisas que a gente deveria amar fazer se não fosse a vida de cão que levamos normalmente. Dentre os cuidados que todas as mulheres deveriam ter com o próprio corpo, eu diminuiria a relevância de ter uma bunda toda boa e diria para elas prestarem atenção em seus ciclos menstruais.

Escrevi mais longamente sobre a experiência de monitorar ciclos aqui e, quando passei a desconfiar de uma endometriose, entendi que era hora de conversar com um profissional bem preparado sobre o assunto. Tive a oportunidade de ser atendida pela chefe de ginecologia de um dos hospitais mais importantes da Espanha, então me senti em boas mãos para dividir a angústia sobre cólicas torturantes e ciclos irregulares.

Expliquei calmamente os detalhes que monitorei com a ajuda de um aplicativo e tudo o que ouvi, no final, foi: "Você lê coisa demais na internet. Acabamos de ver seu ultrassom e vai tudo muito bem. O ciclo das mulheres muda mesmo ao longo dos anos, então pare de ler bobagens na internet".

Eu não soube nem como começar a explicar que sou jornalista & curiosa, além de trabalhar o tempo todo na internet. Não existiria a menor possibilidade de seguir o conselho dela, mas algo nesse papo me atingiu feito um pescotapa gratuito: pensei em quantas pessoas trabalham nesse momento para promover a conscientização das mulheres a respeito do próprio corpo — e em como esse processo de me observar foi positivo em vários sentidos — e me senti agredida pela médica.

Quando a penicilina foi descoberta, o mundo mudou. Tudo muito legal, mas esse recurso foi "privatizado" de diversas formas, então a gente colocou nossas possibilidades de cura inteiramente nas mãos de profissionais de saúde (sem mencionar a indústria farmacêutica), mas o direito à cura e à consciência sobre nossos próprios corpos deveria continuar sendo nosso.

Imagino a quantidade de médicos que pode ler isso e contar melhor sobre o sucateamento dos sistemas de saúde — e a necessidade de atender pessoas com a maior agilidade possível para dar conta de todo mundo — entre mil outros problemas cabeludos aí. Mas tudo no mundo tem mais de um lado.

Dizer a um paciente que ele deixe de se informar sobre o próprio organismo pode ser um dos inúmeros fatores que fazem com que a fila de pessoas a serem atendidas seja sempre superior às chances de que esse atendimento seja efetivo. Talvez o caminho seja inverso.

Não sou médica, mas sei que até os médicos são pacientes de si mesmos. Quanto mais uma pessoa sabe sobre o próprio corpo, mais oportunidades de cuidar bem dele podem surgir. Eu queria ter dito à médica que pacientes bem informados devem ser pacientes melhores, mas acabei saindo apressada, talvez por lembrar das mulheres que estavam na fila depois de mim (e com cara de dor).

A baderna que o acesso à internet está fazendo na nossa sociedade há mais de vinte anos não tem volta, para o bem e para o mal. Prova disso é o estrago provocado por notícias falsas. Nesse panorama, é evidente que milhares de pacientes vão chegar aos consultórios com teorias estapafúrdias sobre saúde tiradas de sabe-se lá qual site duvidoso, mas isso não é justificativa para dizer a um ser humano que ele precisa parar de tentar investigar o próprio corpo.

Com certo otimismo, suspeito que o advento da internet faz com que tenhamos a oportunidade e a responsabilidade de sermos pacientes melhores em alguma medida. Nada mais justo do que pedir o mesmo aos profissionais de saúde.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.