Ainda bem que morar em república já não é coisa de estudante
Aos 22 anos, fui morar em uma república estudantil pela primeira vez. No caso, quando você começa a sua emancipação dividindo teto com uma pessoa que sofre de transtornos sérios de personalidade, praticamente qualquer coisa que venha depois é lucro. E vem coisa sem parar.
Durante a graduação, convivi com a mais diversa fauna de roommates. Repúblicas universitárias são laboratórios antropológicos porque, se você estava achando ruim quando sua mãe te acordava para ir à feira, espere só até alguém te acordar porque o fogão quase explodiu em decorrência de um vacilo ou porque esta pessoa não sabe transar dentro do limite aceitável de decibéis e de decoro. A gente morre sem ver de tudo nessa vida, mas quem passa por repúblicas vê um pouco mais.
Sempre que relembrava os perrengues, gargalhadas, festas com a visita-surpresa da polícia e a bonita solidariedade que brota entre pessoas falidas dividindo um "jantar" feito de pipoca com queijo ralado, eu costumava soltar uma gargalhada agridoce… Até que muitos anos se passaram e voltei a morar em uma república, mas não sou estudante há eras.
Essa tem sido a realidade de milhões de adultos pelo mundo nas últimas décadas, porque já não é unanimidade entre os adultos aquela coisa de constituir família, mas, inevitavelmente, eles acabam constituindo boletos — nem sempre fáceis de pagar sem a ajuda de terceiros. A solução tem sido construir o lar com amigos, semi-conhecidos ou com o primo-do-vizinho-do-colega-da-firma porque, bom, era quem estava disposto. Além deste perfil de república tardia, existem muitos. Gente que prefere dividir uma casona a morar modestamente sozinha, gente que não gosta mesmo de morar só e até o pessoal que fez família mas prefere viver em comunidade. Não importa muito a fórmula: sempre sai algo rico disso.
Durante o tempo em que morei sozinha, temi o momento de voltar a dividir território íntimo com outro adulto já calejado e cheio de manias como eu, e para piorar, sem laço de sangue ou de amor que justificasse isso aí. Só esqueci de um detalhe: além de manias, as pessoas são universos, e quase sempre fascinantes. Assim como aconteceu durante os anos de faculdade, morar com uma adorável desconhecida nos últimos meses me fez lembrar de que carinho e admiração também nascem em terrenos áridos, tipo o da discussão sobre os limites de fermentação da louça suja na pia. Basta que estejamos meio alertas e minimamente dispostos.
Compartilhar a vida doméstica com estranhos é lembrar que somos os estranhos do outro e que ainda vale a pena conviver com o não-familiar. Ou é isso ou tenho dado muita sorte desde que saí da república onde o menino roubava minhas bolachas cream cracker enquanto eu saía para trabalhar.
Eu preferiria ter passado todo esse tempo a bordo de um veleiro, dando a volta ao mundo e comendo crustáceos finos se pudesse escolher? Provavelmente. Mas as riquezas que acumulei até hoje são as que posso ter: toda a sorte de ter me relacionado intensa e profundamente com pessoas improváveis — e no momento histórico em que quase todas as relações humanas são bem superficiais, incluindo as relações familiares.
Morar em repúblicas, adultas ou estudantis, só reforça a teoria de que na paz, fazemos amigos; na guerra, fazemos aliados. Que bom que tanta gente também tem me aguentado durante esses anos.
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