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Luiza Sahd

Pior do que ser atrasado do Enem, só ser atrasado em tudo na vida

Luiza Sahd

07/11/2017 08h00

Nós, 365 dias por ano. (Foto: Reprodução/ BOL Notícias)

 

Existem dois eventos com influência medieval que já viraram parte do calendário oficial brasileiro. O primeiro é o aniversário dos Supermercados Guanabara, no Rio de Janeiro, que sempre termina em selvageria e confusão, como podemos ver aqui.

O segundo, um pouco menos violento mas quase tão assustador quanto, é a cobertura midiática dos atrasados do Enem.

Neste, o roteiro é sempre mais ou menos o mesmo. O pessoal se atrasa, o portão fecha pontualmente e sem conversa, aparece gente chorando, aparece mãe de aluno tentando passar pano pro filho, tem sempre um estudante MacGyver tentando entrar de peixinho por alguma fresta ou tentando escalar as grades, tem confusão, tem brasilidade em estado sólido e tem o grand finale clássico: bate-boca dentro e fora das escolas.

Na polêmica sobre ser certo ou errado rir dos atrasados do Enem, me sinto um pouco no lugar de fala. O mesmo afeto que nutro por essa gente chorando no portão é o que tenho pelos memes pré-internet do Rubinho Barrichello, porque nem imagino como deve ser a sensação de chegar no lugar certo na hora certa e suponho que não estou sozinha nessa.

Pra começo de conversa, gostaria de saber por que só existe compaixão com atrasado do Enem. Por mim, era compaixão a rodo com tudo quanto é gente atrasada. A dor do atrasado crônico não sai no jornal, e ele leva sempre a pecha de irresponsável, mau caráter, relapso ou crápula. É daí pra baixo.

Aluno atrasa para o Enem: COITADO, MORA LONGE

Pessoa atrasa pra qualquer coisa na vida: MORRE, DIABO.

O sonho do atrasado contumaz seria descobrir o mistério da pontualidade, algo mais nebuloso do que O Terceiro Segredo de Fátima. As pessoas pontuais nunca revelam seus métodos; só sabem descer o cacete em quem não se dá bem com relógios. E o único atraso que é bem visto socialmente é o atraso das noivas, o que me faz cogitar casar mais vezes do que a Gretchen. Certa ela.

O que poucos sabem sobre os atrasados crônicos, para além do fato de eles também terem um coração, é que eles são verdadeiros heróis anônimos. Só um viciado em atrasar tem os seguintes superpoderes:

– Correr atrás de ônibus na velocidade do Sonic da Mega Drive;

– Engolir a comida sem mastigar e sem morrer por anos;

– Tomar banho lavando tudo o que é imprescindível poupando litros e litros de água e energia em tempo recorde;

– Fazer uma maquiagem disfarça-olheira mais elaborada do que essas de Halloween em até 5 minutos;

– Exibir o melhor sorriso de todos na firma para evitar esculacho logo cedo;

– Cultivar amizades profundas apesar do fato de nunca pode conversar direito porque está sempre correndo com alguma coisa;

– Amar ao próximo quando ele é chato com pontualidade;

– Desenvolver o bonito dom da humildade para se desculpar diariamente. Atrasado não tem direito a orgulho não;

A lista poderia não ter fim, mas por motivos de atraso na publicação, ela termina aqui com o sonho de que, um dia, esses humilhados ainda sejam exaltados.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.