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Luiza Sahd

Ser legal com os outros é moleza. Difícil é ser legal consigo mesmo

Luiza Sahd

03/11/2017 04h00

Há mais semiótica na pregação do Profeta Gentileza do que sonha nossa vã filosofia (Foto: Reprodução)

 

Por onde quer que a gente ande no Rio de Janeiro, encontramos o lembrete: "Gentileza gera gentileza". Nunca discordei, mas talvez tenha passado uma vida inteira interpretando mal essa mensagem, porque ser gentil com as pessoas não é tão complicado. Mesmo em um dia ruim, sempre podemos tirar um sorriso amarelo do bolso e ser "gente fina", receber sorrisinho de volta e tal. Agora, aqui: E SE a gentileza para com nós mesmos fosse o verdadeiro ingrediente para fabricar a gentileza que espalhamos pelo mundo? Eu acho que a casa ia cair (e talvez por isso mesmo já tenha caído, na verdade). Sei lá você.

De tempos em tempos, a história se repete comigo. Passo por um período difícil, não sei lidar com minha própria ranhetice e tenho a sensação, olhando para dentro, de que aqui jaz uma pobre alma que costumava ser luminosa. Procurando entretenimento melhor do que minha companhia chatíssima, passo a ser extremamente legal com as pessoas porque, quem sabe recebendo gentileza de fora, a vida se torne um pouco mais alegrinha.

O motivo pelo qual essa equação não fecha eu vou ter que explicar em forma de equação mesmo, onde a variável X é a porra da felicidade que a gente não acha em lugar nenhum e, quando acha, não consegue armazenar num potinho, cofre forte ou embaixo do travesseiro.

x = 8y + 1z – 10w

Na equação, temos também que Y é a gentileza consigo mesmo, Z é a atenção que recebemos de fora e W é a média que a gente fica fazendo pra ganhar biscoito dos outros.

Infelizmente, sou de humanas e não sei por que coloquei essa equação aí sendo que nem lembro como resolver equações e muito menos tenho a fórmula da felicidade. Se tivesse, estaria ocupada sendo feliz e não fazendo piada besta, inclusive. Mas uma certeza eu tenho: a gente só consegue ser legal com os outros se tiver isso para tirar de dentro.

Quantas vezes você se fez um chá gostoso esse mês? E para as visitas? Pra visita você serve chazinho, né, safado? Tomou cuidado para não rolar na ribanceira da ressaca após uma noitada de bebedeira para "esquecer os problemas"? Aliás, você sabe que o álcool reaviva a memória dos problemas?

Atividade física te mandou beijos e alimentação saudável também. E sabe aquela treta burocrática que você finge não precisar resolver? Acredite, ela é mais importante do que responder papo furado no WhatsApp e vai te carcar logo ali, num futuro próximo, se você continuar fingindo que não precisa cuidar disso.

São inúmeras as formas de ser legal consigo mesmo e elas vão desde ter ânimo para dar um tapa no visual (palavra de quem foi de pijama a uma festa semana passada) à meditação transcendental. Se a gente consegue abraçar uma ou todas, é sempre uma questão. Mas enquanto continuarmos dando o que não temos para quem está fora na esperança de receber afagos e distrações dos próprios problemas, a gente vai continuar no saldo devedor interno e, além disso, não vai faltar oportunidade de se emputecer com quem não corresponder sua dedicação à altura.

Multa de saldo devedor no banco já é cabulosa, mas o rombo que fica quando a gente espera gentileza externa para cobrir aquela que deveríamos depositar em nós mesmos… Rapaz. Taí uma dívida que não dá para pagar em suaves parcelas.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.