Islândia: como um país tão frio pode ensinar tanto sobre calor humano?
Em novembro do ano passado, vivi o papel de hipster corajosa e me meti a visitar a Islândia — ou Disneylândia dos adultos descolados — em pleno outono. Desembarquei na ilha mais ou menos às 11 horas da manhã e jurei que ainda estava amanhecendo, porque, lendo roteiros de viagem, deduzi que "pouca luz" tinha a ver com anoitecer lá pelas 4 da tarde. Fui descobrir, quando o sol se pôs, que a luz crepuscular islandesa seria o primeiro desafio em terras tão hostis para uma viciada em verões. Um fiapinho de sol é o máximo que o povo de lá recebe por quase metade do ano, mas como essa gente é solar!
Antes de ir, conversando com um amigo que passou uma temporada em Reykjavík, escutei que os islandeses têm fama de vanguardistas principalmente por causa da equidade social e de gênero, das instituições democráticas (aquelas sim, funcionando perfeitamente) e da menor taxa de crimes violentos do planeta. Por outro lado, esse amigo garantiu que todo islandês tinha um quê de caipira brasileiro, ainda que com rostinho viking. Hoje, só me resta concordar.
Depois de uma pequena viagem do aeroporto para o centro da capital, descemos do ônibus tentando não levantar voo com um vendaval de cortar a pele. Frio, né. Que surpreendente! Acontece que isso provavelmente deu uma congelada em nossos neurônios, de modo que não encontrávamos nossa hospedagem nem a pau. Apelamos para mapas online que não ajudaram em nada, até finalmente nos conformarmos com o bom e velho "pedir ajuda aos locais". Abordamos um cara que passeava um recém-nascido em um carrinho, apesar da preocupação pela vida daquele bebê tão pequeno naquele frio tão horrível, mas não havia plano B. Ele nos acompanhou até o endereço mais provável. Pobre bebê! Tocamos a campainha. Nada. Ele nos conduziu até um segundo endereço provável. Meu Deus, o bebê no frio! Só a gente parecia se importar com isso ou com o tempo gasto na jornada.
Passamos vinte minutos nessa gincana até que um segundo passante assumiu nossa "custódia". Ele nos levou até um posto de gasolina onde todos os frentistas fizeram uma espécie de assembléia para deliberar onde ficava o prédio que procurávamos. Discussão vai, discussão vem, um dos funcionários nota que nosso anfitrião estava em uma janela vizinha acenando para nós. Informação oficial: a Islândia é mesmo um pedacinho de Piracicaba boiando no mar da Groenlândia.
A simpatia e a solidariedade foram as únicas constantes em uma ilha com paisagens e mudanças climáticas tão extremas. Os motoristas de ônibus não chegavam a ser sorridentes, mas nos deixaram passar sem pagar umas três vezes até a gente entender que eles não tinham troco para passagens compradas em espécie; feito avós preocupadas com as netas, o pessoal de um restaurante notou que estávamos bem esfomeadas e nos presenteou com iogurtes para o lanchinho da tarde. Teve quem morasse em outra ponta da cidade mas topasse dividir táxi conosco com medo de a gente se perder. E houve as piscinas.
Colocar biquíni e sair ao ar livre com temperatura média de 0°C é uma constante para essa gente tão peculiar. Em qualquer buraco da ilha, podíamos mergulhar em tinas ou piscinas públicas aquecidas a 39°C. Conclusão: esse é o happy hour da galera. Enquanto a gente faz amizade bebendo litrão, os vikings se enfiam numa jacuzzi com sauna anexa dia sim e dia também para jogar conversa fora, quem diria?
Foi estranho pensar que o lazer deles faz bem para a saúde porque lazer e saúde andam muito dissociados nos arredores da linha do Equador. Além do mais, pensar em gente nórdica que olha dentro dos nossos olhos, fala manso e aguenta 700 turistas por hora perguntando como é a melhor forma de observar auroras boreais sem chorar de ódio é a prova definitiva de que cada islandês mereceria um Nobel da Paz. Perguntar como observar auroras é como perguntar a um paulistano onde vai ser a próxima chuva.
Em uma ilha com 130 vulcões, com gêiseres que jorram água fervente a mais de 100 metros de altura de 5 em 5 minutos, com praias de areia negra e onde a água do banho sai fedendo a enxofre, qualquer coisa pode acontecer. Mas a última coisa que eu esperava era que a Islândia aquecesse tanto meu coração — e por tanto tempo. Um pessoal que sai de balada usando jaqueta jeans enquanto você joga as mãos (de luva) para cima e espera Jesus puxar… Esse pessoal tem muito calor por dentro.
O maior legado que a Islândia me deixou, além da aptidão para escrever "Reykjavík" sem consultar o Google, é principalmente a perspectiva de que o aconchego pode vir de dentro para fora quando o entorno é hostil ou selvagem. "Mas eles têm estrutura e boa educação!", dirão os espertinhos; eu digo que os ricos brasileiros também os têm e, bom, quase nunca são lá muito afáveis.
Espero estar imersa no calor da Islândia outra vez o mais breve possível.
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