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Luiza Sahd

Ninguém é inocente no filme 'mãe!' — nem a protagonista

Luiza Sahd

07/10/2017 10h28

Jennifer Lawrence: essa carinha de desentendida não vai te ajudar em nada. (Foto: reprodução/ W Magazine)

 

Se você ainda não assistiu "mãe!", a coisa mais importante que precisa saber antes de dar este passo é que o filme pode te fazer mal, inclusive fisicamente. Após duas horas de "isso não tem como piorar" seguido de "opa, tem sim!", levei cinco minutos grudada na poltrona com medo de desmaio ou torcicolo causados por tensão acumulada. Enquanto fazia respiração cachorrinho, troquei olhares de cumplicidade com os demais espectadores que seguraram as pontas até o fim da sessão.

Indo ao que viemos, aposto aqui em uma análise arriscada e cheia de spoilers de "mãe!", já que isso ainda não dá cadeia e que especular sobre o que um artista queria dizer com sua obra seria uma estupidez total se não fosse a nossa única função como público. Partindo dessa liberdade, vou te falar que a Mãe (Jennifer Lawrence) do filme me incomodou mais do que eu gostaria e, como já dizia Ronnie Von: significa.

Pulando as referências bíblicas que toda a crítica já descascou até o caroço e que são realmente claras, se a gente olhar para os personagens com mais pé no chão, como um casal que poderia ser você e o crush se ele colaborasse, a Mãe per se não estava bem. Antes mesmo de começar o apocalipse zumbi dentro de casa, ela já estava enchendo a cara daquele pozinho amarelo calmante para segurar a barra que é gostar mais d'Ele (Javier Bardem) do que de si mesma.

Longe de mim defender Ele, inclusive porque só faltou o diretor meter um neon *EGÓLATRA* na testa do cara caso a gente tivesse essa dúvida. Quem não teve muita sagacidade aí foi a Mãe, que recebia atestado de trouxa a cada segundo e queria mais. Todo castigo para um trouxa ainda é pouco, a gente sabe.

A crítica levantou a lebre do mansplainig e outros machismos evidentes no roteiro. Isso é muito importante, mas o que tem passado batido é que o desespero para "amarrar" o marido foi a ruína da Mãe. Era como se ela quisesse engolir ou fazer o cara morar dentro dela, literalmente. Talvez nem por maldade, mas provavelmente por um vazio existencial bem mal resolvido. A mulher era oca e, de ponta a ponta da história, qualquer interação d'Ele com o mundo exterior causava desespero na Jen, mesmo quando o bicho ainda não tava pegando na casa. Ela queria estar a sós com o marido 24/7.

O próprio nome do filme é simbólico nesse sentido: toda mãe é morada dos filhos e, em alguma medida, toda mulher é potencialmente uma morada de homens se a gente pensar em anatomia — ainda que essa leitura do nosso corpo seja horrenda. Fora isso, outra pista que Darren Aronofsky esfrega na nossa cara é a obsessão da esposa em reconstruir cada detalhe da casa do marido com as próprias mãos. No final, Ele mesmo diz "Sou o que sou. Você é a casa".

Atire um sapato na tela aqui a pessoa que nunca se submeteu a isso. Tenho nem moral para criticar a Mãe porque, olha, cansei de dar dessas. O final do filme também já vimos antes: o sujeito aceita tudo o que ela entrega de bonito, pega o coração da gata, exibe orgulhosamente em uma estante e usa-o como inspiração para escrever novas histórias. Ele segue a vida, arranja outra Mãe e o conto se repete. A personagem de Lawrence sabia disso quando respondeu à hópsede (Michelle Pfeiffer) que o cristal no escritório do marido não havia sido presente dela; não era a primeira e não seria a última a passar por isso.

Ela é sofrida? Muito. Ela foi esperta? De jeito nenhum, mas poderia. Depois que a gente entrega o coração em uma bandeja, não adianta nada reclamar com o algoz. O que fica de "mãe!" para mim, além do trauma das cenas sufocantes e da produção altamente pretensiosa, é a lição sobre quantas vezes temos nos dedicado à reconstrução da mansão alheia sem sequer providenciar morada (nem uma mísera Toca do Gugu) pra nós mesmas.

Os créditos subiram enquanto uma música de amorzinho soava como se tivéssemos acabado de assistir uma comédia romântica trivial. Se o sarcasmo não foi acidental, meus parabéns. Saí do cinema me prometendo nunca mais fazer esse papel(ão) de Jennifer Lawrence na vida real.

 

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.