Pessoas intensas: elas são ruins de discernimento, mas boas de coração
Num domingo besta há um par de anos, ouvi pela primeira vez a Bethânia cantando "Baioque", do Chico Buarque. A música foi introduzida por um amigo dizendo assim: ó lá você.
"Quando eu amo, eu devoro todo meu coração
Eu odeio, eu adoro, numa mesma oração"
Orgulho nenhum de ter feito sinal afirmativo com a cabeça enquanto escutava esse absurdo de verso dolorosamente real. O pessoal intenso é mais caricato do que a Vera Verão levantando o braço, girando e dizendo "Eeeeepaaa".
Caso você encontre dificuldade em reconhecer quando uma pessoa é intensa, algumas referências estéticas podem ajudar. O intenso geralmente tem afinidades com:
Quadros de Pablo Picasso;
Chitãozinho e Xororó cantando "Galopeira";
Seu tio que faz churrasco após o oitavo latão de cerveja;
Filmes do Almodóvar;
Tomadas de destruição do filme "Godzilla";
Os figurinos da Elke Maravilha;
A voz do Marcio Canuto;
O vídeo do Galvão Bueno na final do Tetra;
O gay que saiu do armário dançando "Sweet Dreams";
Nany People batendo o leque na cara de alguém;
Bette Davis bem pistola em "A Malvada";
O comportamento dos pássaros de Hitchcock como um todo;
Este senhor que só queria um café (mas não soube gerenciar o sentimento).
Outro ótimo exemplo para sintetizar os bastidores cerebrais do intenso é a multidão se acotovelando na partilha anual do bolo de aniversário de São Paulo. O intenso é basicamente aquela gente toda em um só corpo. Esse tumulto é a alma do intenso em uma casca de noz.
O que a gente pagaria por autocontrole? Complicado estimar, porque somos tão exagerados que gastaríamos o PIB da Arábia Saudita nisso sem nem avaliar muito se era o caso. Cautela é sempre uma dificuldade.
Por exemplo: uma vez, eu estava entrando em cirurgia (não sem antes contagiar a toda a equipe com meu pavor de anestesia geral) e a enfermeira falou "pense em coisas bonitas, vou te fazer dormir". Botou um inalador na minha cara com toda a delicadeza do mundo e minhas últimas palavras foram "SOCORRO, VOU DESMAIAR". Assim mesmo, em caixa alta — e não sei bem por que eu esperava um resultado diferente ao respirar aquela fumacinha, mas enfim. Puf, teto preto.
Segundos depois, abro os olhos, vejo as luzes do centro cirúrgico apontadas para a minha cara e "PESSOAL, ACORDEI DA ANESTESIA, PÕE MAIS ANESTESIA" (em uma situação de cirurgia, a única coisa mais chata do que anestesia é a falta dela).
Bom, mas daí a médica avisou que eu estava acordada porque tinha acabado o procedimento mesmo e, olha só!, sobrevivi. Foi-se o efeito da anestesia, ficou meu carão — e mais uma anedota para o repertório da turma do hospital.
Uma sucessão de vexames é o que espreita as pessoas intensas em cada esquina. A gente vê uma oportunidade de passar vergonha e se desespera para não deixá-la escapar.
Paciência: o que será isso?
Discrição: coisa pros fracos.
Bom senso: mandou abraços.
Temos orgulho? Não temos.
Temos uma solução? Tampouco.
O consolo é que não estamos sós. Aliás, gente intensa costuma farejar seus iguais num raio daqui até Xangai. A gente se conhece, né. Geralmente, se adora. Eventualmente passa a se odiar intensamente etc.
A humanidade já desenvolveu antídotos para picada de bichos peçonhentos, para várias dores do corpo e até para doenças terminais. Não é possível que não haja um para sentimentos arrebatadores.
Existem os remédios psiquiátricos, mas o intenso é o equilibrista na corda bamba e, abaixo dele, está o fosso da loucura. Quase nunca dá para bater o martelo se é o caso de intervir ou deixar a pessoa lá, gemendo e rolando no chão porque quebrou uma unha.
Claramente, a gente devia cobrar couvert artístico por existir. Na prática, a gente só paga. Mico.
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