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Luiza Sahd

Abra o olho: sua avó não é boba (nem santa) e apronta mais que você

Luiza Sahd

23/08/2017 08h00

Dona Benta: a senhora não me engana! (Foto: Divulgação/TV Globo)

 

Arquétipos são ciladas, mas é inegável que eles facilitam e organizam o nosso raciocínio. Nosso cérebro é meio limitado e a gente se vira como pode, vamos lá.

Quando a gente pensa em avó, o primeiro arquétipo a que recorremos é algo semelhante à Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, aquela do "Sítio do Picapau Amarelo", que tinha todo o tempo do mundo para ficar esquentando a pança no fogão preparando bolinho de chuva e distraindo os netos.

Nem toda avó é isso aí, mas, em partes, é também. Se eu fosse aposentada, provavelmente gastaria um tempo fazendo bolos horrivelmente calóricos de 17 andares para o lanche da tarde e aproveitaria os dias ociosos para encher as pessoas que amo de mimos. O que eu não gostaria, de jeito nenhum, é que pensassem que, por ser velha e ter um ritmo de vida mais pacato, sou tonta, virgem ou ingênua.

Morei muitos anos com a minha avó. Aliás, a coitada me aguentou nos mais difíceis, que são a adolescência de ponta a ponta. Em todos eles, ela se mostrou uma das pessoas mais modernas de que tenho notícia, perdendo apenas para David Bowie e talvez empatada com Caetano Veloso, que, aos 75 anos de idade, vai ficando assombrosamente mais jovial a cada mês.

Aos 15 anos, comecei a fumar. Erradíssimo, ela ressaltou. Mas aproveitávamos as tardes jogando conversa fora, jogando baralho, escutando música, rindo, (só eu) fumando na sacada, coisa que demorei a fazer diante do resto da família. Ela sabia que eu cabulava aula. Ela sabia que eu tava de ressaca quando comecei com os primeiros porres. Alguém tem dificuldade em reconhecer uma ressaca quando se vê diante de uma? Sua avó também não, pode apostar.

Quando perdi a virgindade, não contei para nenhum adulto responsável, mas ela fazia cara de boba complacente quando começou a ficar frequente isso de "dormir na casa da amiga" toda hora. Deve ter sido por preguiça de passar por casta que ela resolveu deixar o barco correr e não tocar no assunto. Virava os olhos quando eu avisava que ia sair com fulana, fazia um muxoxo e ia caçar o que fazer também. Ninguém ali era santa, e ela, menos ainda.

Todo mundo achava fofo e maduro eu namorar por quatro anos desde os 17; ela sussurrava feito um capeta quando estávamos a sós: "aproveita a juventude, Luiza. Seu namorado é um amor, mas não tem cabimento você se prender a isso agora. Vai estudar, vai viajar, vai sair! Esse tempo não voltará para você depois".

Minha avó também tinha uma amiga dez anos mais velha (descanse em paz, Elzinha!) que sempre passava uns dias em casa e tinha muito ciúme de mim. A Elzinha queria atenção exclusiva e, apesar de me conhecer desde que nasci, só se referia a mim como "a menina". Não pronunciava meu nome nem se a gente a ameaçasse com faca de churrasco.

"A menina não vem comer?"
"Nossa, Elis, a menina acorda tarde, hein?"
"A menina vai sair a essa hora? Que estranho."

Pode brigar com velha? Não pode. Tadinhas. Tão puras.

Elzinha era tão maquiavélica que roubava no baralho para bater primeiro e fingia que aquela carta lá que "grudou" na descartada foi parar ali por uma mera limitação de raciocínio ou coordenação motora dela. Sabe como a idade é limitante, né? E minha avó não ficava atrás. Uma vez, o porteiro perguntou se a Elzinha era MÃE da minha avó. Elzinha quase chorou; minha avó passou anos repetindo essa história enquanto jogava a cabeça para trás para rir até faltar fôlego.

Não tenho memórias da minha avó me julgando, a não ser que eu me vestisse como velha. Isso aí ela odiava. E também quando eu usava um cabelo muito certinho, quando eu ficava que nem um verme jogada na cama curtindo uma introspecção ou quando eu tinha medo do desconhecido. Ela me estragou da melhor forma possível e, de quebra, me ensinou, por mimese, a me fazer de idiota para não lidar com o que não convém.

Até hoje, ela aplica pequenos golpes nesse sentido. Agora, aos 86 anos e ainda com uma vitalidade chocante (é a irmã caçula de três que seguem vivas e lépidas), ela deu de se fazer de surda quando telefono fazendo perguntas embaraçosas ou delicadas. "Ih, Luiza, estou velhinha, não te escuto!". Repito a pergunta duas vezes. Nada. Passo para o assunto seguinte: ela volta a escutar, milagrosamente.

Indo muito mais longe, reserve um tempo do seu dia para ler (ou reler) a incrível saga destas duas velhas que se odiaram por 50 anos e fizeram as maiores atrocidades em nome desse ódio-quase-amor uma pela outra. Desgraçadamente, a Netflix ainda não soltou nenhuma temporada deste roteiro que faz "Game of Thrones" parecer uma fábula infantil.

Gente. Pensa na Dercy Gonçalves. Na Nair Bello com a Hebe e a Lolita Rodrigues. Pensa na mãe da Milly Lacombe, que deu essa raquetada (com razão) na palavra "senhorinha".

Não vejo a hora de ser velha. Quero meter esse salvo-conduto de senilidade no bolso logo para mandar tudo à merda e fazer as loucuras que quiser, depois fica chato brigarem comigo.

Você vai aí achando que engana sua avó, vai. Ela é quem passa a perna em você. Fica de olho na velha.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.