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Luiza Sahd

Não passa roupa? Bem-vindo à irmandade secreta dos sem-ferro-de-passar

Luiza Sahd

17/08/2017 08h00

Hermes e Renato, da MTV, seriam os papas de nossa seita.

Existem os mistérios da maçonaria, da cientologia, dos illuminati e da família Kardashian. A gente nunca vai saber 100% o que acontece por ali se não estiver dentro.

Nunca planejei participar de nenhuma seita secreta mas, de um dia para o outro, me vi cega de fanatismo por uma delas: a irmandade dos sem-ferro-de-passar.

Nosso comportamento quase sempre é insuspeito. A maioria de nós toma banho regularmente, tem emprego de carteira assinada (até quando a Reforma Trabalhista permitir) e não costuma pregar em público ou tentar converter não-iniciados. Usamos muita roupa de algodão que é para dar menos bandeira, preferimos calças jeans às de tecido, amamos a moda stoned, que nos permite mascarar a preguiça suprema de causar boa impressão com o verniz de "minha atitude é isso aí mesmo, sou desencanadão pra caramba".

Não temos um aperto de mão secreto; a gente se reconhece no olhar.  Não pagamos dízimo de nenhuma ordem. Mal e mal pagamos a conta de luz. O que nos une é, definitivamente, o desleixo.

Os membros da irmandade costumam pendurar as roupas no varal com muito capricho (esse sim é um ritual complexo que serve para dissimular nossa estirpe) e agir com naturalidade usando roupas amarrotadas em ceias de final de ano, batismos e casamentos, inclusive quando os noivos somos nós.

As origens da seita são pouco conhecidas. Sabe-se que, no início dos anos 2000, com o advento da modinha indie, nasceu também um pessoal que resolveu que estava tudo bem ir pra firma sem engomar a camisa e a coisa foi saindo de controle. Estima-se que, atualmente, a irmandade tenha um número de adeptos considerável, perdendo apenas para os evangélicos, católicos e espíritas no Brasil. Em outras partes do mundo, os números são ainda mais impressionantes.

O que pedimos: respeito. Sobretudo, dentro de nossas próprias casas (com agravamento nas casas dos avós) e por parte dos recrutadores em grandes empresas. Os maus-tratos que sofremos em instituições de grande porte vem fazendo com que busquemos empregos sempre nos mesmos lugares, gerando um colapso salarial e de demanda.

Você sabe que vai encontrar os membros da irmandade em um destes trampos: agências de publicidade descoladas, produtoras, estúdios de tatuagem, startups em geral, salões de cabeleireiro que servem cerveja long neck e editoras falidas. Alguns de nós chegamos até mesmo ao extremo de virar freelancers. E nenhuma mãe quer ver o filho freelance, não é mesmo?

A grande questão sobre a irmandade dos sem-ferro-de-passar é até que ponto o fanatismo cego pode destroçar um potencial futuro brilhante. Quantos médicos diligentes, advogados sagazes, quantos engenheiros prodigiosos poderiam existir se não fosse a nossa firmeza de princípios contra a demanda de montar uma tábua e ficar alisando uma peça de roupa que, no final do dia, vai para um cesto sujo amassar tudo de novo?

Os sem-ferro-de-passar, pouco a pouco, estão tomando os espaços públicos. Eles estão com sangue nos zoio, eles já estão se articulando inclusive com a seita dos sem-Tupperware, que guardam panela na geladeira.

Quando você pensar que não, eles estarão no seio da sua família, casando com suas primas, participando do bolão da Copa e ganhando de você na aposta. Um dia, eles vão roubar o seu emprego, você que não fique esperto não.

A gente vai se vingar. Vai sim.

Mas pode ser que demore um pouco porque, nossa, esse negócio aí de defender ideais dá mais trabalho do que passar calça social com vinco.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.