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Luiza Sahd

Que bom que nossos cachorros nos fazem de trouxas

Luiza Sahd

14/08/2017 08h00

Na vida, ninguém sai ileso no quesito "papel de trouxa", mas, quem tem cães, sai menos. Tenho sempre a sensação de ter gasto minha cota de trouxice com os peludos e ando por aí com uma espécie de vacina para migués praticados por seres que se apoiam em duas patas. "Desculpa, acabei de dividir o melão que planejava comer inteiro com a cachorra. Fica pra próxima esse golpe aí que o senhor está tentando me aplicar".

Outra vantagem indiscutível de ter cães é o progresso emocional no sentido de procurar amor na rua X procurar dentro de casa. No trabalho, sempre fui das que esperavam ganhar Biscrok da chefia. Aí, arrumei dois cachorros e, finalmente, no trabalho, passei a procurar só dinheiro e experiência. Amor, eu ganho quando abro a porta e esse pessoal aqui me recebe como se eu tivesse passado sete anos no front do Afeganistão, mesmo que eu só tenha descido para buscar uma pizza:

Romeu tentando sorrir sem usar o rabo.

 

Hebe e sua filha, Nair Belo.

Os cães também ensinam demais sobre os malefícios de economizar afetividade. Amor represado enlouquece. Repara bem o que acontece na sua cabeça quando você fica racionalizando excessivamente se deveria demonstrar esse ou aquele afeto. O horror, tipo seu cão grunhindo feito louco quando você volta de viagem — mas fazemos isso para dentro, no cérebro, sem extravasar… O que é bem pior, né? Diz que adoece.

Ter cães me deixa meio chateada em constatar que, ao contrário deles, todo mundo pratica essa modalidade de racionamento de dengo. Quando crescer um pouco mais, quero ser cachorro e demonstrar tudo o que sinto (inclusive o lance de rosnar mostrando os dentes). Ah, e não me preocupar em respeitar horários para tirar sonecas. Todas os momentos são bons momentos para dormir, convenhamos.

Falemos sobre a importância de fazer coisas ridículas. Cachorro não tem vergonha de papelão, não. Eles acreditam nos próprios sonhos e tentam encoxar pernas de estranhos, arrastam a bunda no chão quando tá coçando, uivam se ficam muito felizes ou tristes. A gente também tenta encoxar pernas de estranhos às vezes, mas com muito menos graça a simpatia. Ponto para eles, de novo.

Mais uma tentativa de sorriso do Romeu.

Antes de ter cães, meu plano era adestrá-los, mas a adestrada fui eu. Quando os cães fazem contato visual persistente comigo, reconheço meu papel de vassala e saio feito uma máquina checando como vai a água, a comida e os horários de passeio deles. Se nada funcionar, dou carinho, fico estudando o que esses seres superiores podem querer. É o mínimo que se pode dar em troca do tanto que eles sabem sobre amor e entregam tamanho conhecimento, de bandeja, para a gente.

Melhor do que qualquer conclusão que eu possa tirar sobre esses bichos, ficam as palavras do escritor Valter Hugo Mãe, que está claramente feliz com seu papel de trouxa em se apressar para voltar logo para casa, mesmo quando precisaria estar na rua:

Como é boa a vida dos trouxas! Deus me livre de ser esperta.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.